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A máquina de ler anúncios já foi oleada e está pronta para entrar ao serviço na procura de alojamento novo. Entrou-me pela porta adentro, expulso de um alojamento duplamente mais caro, e veio ocupar as salas no rés-do-chão, ainda não abriu a cama nem desfez as malas, dorme na sala, anda de um modo esquisito, diz que dorme mal e lhe doem as costas, convidou-me para o pequeno-almoço às nove da manhã no café e eu disse-lhe que o tomo em casa, fuma cigarros e não tem isqueiro, crava-mo, ao fim de uns dias já lhe comecei a dizer: já era hora de comprares um isqueiro, não?, ele disse sim, esperou que eu terminasse o pequeno-almoço e quando eu desci ao meu quarto para calçar as meias, lá veio ele atrás esperar que eu lhe desse o isqueiro, nem olhei para ele, ele olhou para mim e para as minhas mãos segurando as meias, deve ter percebido o enfado, pelo menos levou ao contentor do vidro as garrafas de vinho com sessenta e cinco porcento de desconto que comprou e me ofereceu e eu disse que tomo comprimidos e por isso não bebo, sim... tu é mais fumo, disse ele, ele que chegou e logo se aboletou no sofá da sala e me convidou para fumar um pica, um para cada um, deu um bocado para eu fazer para mim, ele não fuma de um charro que veio de outra boca, pediu-me uma mortalha, pediu mais duas ou três ao longo de dois dias por não saber onde estão as suas e eu mostrei-lhe um pacote por vinte cêntimos, queres?, ele não disse nada, eu pus as mortalhas à frente dele e catei duas moedas de dez dos trocos que ele deixa espalhado em cima da mesa, como se o espaço fosse todo dele e eu fosse um potencial ladrão, mostrei-lhe os vinte cêntimos que recolhi e continuou a não dizer nada, fiz questão que compreendesse e não mais me cravou mortalhas, segunda técnica de aproximação apanhada em fora de jogo, quando eu estou sentado a ler a Carolina Maria de Jesus ele diz que é bom ler o povo, a sabedoria popular e fala do António Aleixo, eu concordo e digo que este livro da Carolina, Quarto de Despejo, foi proibido pelo Salazar, e ele diz que muitos outros livros foram proibidos e diz que um livro do Debord passou na censura porque esta considerou que o livro era ilegível, ninguém o vai compreender, disse ele que foi essa a razão porque o deixaram publicar, fala com admiração do Arnaldo Matos, jovem advogado na capital com secretário para lhe comprar os jornais e lhos ler e ele ordenar mais uma acção de educação da classe trabalhadora com o apoio do Movimento de Rapazes a Pintar Paredes, piadeia ele rindo-se para mim, e quando eu de certo modo o reprovo por o Arnaldo ser um burguês a lutar contra os burgueses usando o povo através de uma capela... ele concorda e diz, sim é uma capela e fica nervoso, e eu acabo por dizer: as capelas existem por todo o lado, é lá que as pessoas se juntam, se associam, criam algo que disponibilizam aos gentios que dizem querer educar, quem lucra são os sócios auto-remunerados com o dinheiro dos gentios e dos infiéis, e ele fala do luxo, acaba a mostrar-me uma photoshopada dele super bem vestido num interior de jacto privado, diz que detesta o Bloco de Esquerda e vai votar nos comunistas em Vallis Longus mas eu acho que ele nem vai mesmo votar porque Vallis Longus fica longe e ele não perderá tempo a lá ir, fará como disse que fez quanto à vacina anticovid, não foi porque tinha de ir à Senhora da Hora e não foi porque tinha que cumprir horário de trabalho, eu logo aí pensei e acabei a perguntar-lhe: és adepto das teorias da conspiração?, quando o ouvi a dizer piadas com o sabe-se lá o que nos inoculam, mas ele diz que não, até tem um teste no quarto para fazer quando fôr necessário pôr no nariz e tal, está sempre a falar mal da esquerda e do centro esquerda e diz que compreende porque os comunistas franceses votaran Le Pin, e eu falo do Alentejo e ele nega, diz que o melhor é ignorar o Ventura e ele só tem 1.5 porcento e eu digo que nas últimas ele teve 12 porcento e ele diz que é residual, é o voto de protesto de pessoas que deixaram de se sentir representadas, que foram abandonadas por quem manda, e eu sublinho que estão ressentidas e a ferver ódio contra o Outro, Lacan explicado, o Outro é o povo, o governo, o vizinho que tem hábitos diferentes de Nós, há uma altura em que ele me pergunta, convicto do que diz, se deveríamos unir o cristão ao judeu para destruir o islão, e eu digo que não: olha, vinte anos no Afeganistão e este caiu num mês, tudo começou no Rambo III, não, o islão apenas precisa amansar, abandonar a jihad, democratizar, dar direitos às mulheres e às minorias, eu disse que o islão está atrasado setecentos anos em relação aos cristãos, ele pareceu não compreender mas reparei que ele não gosta de árabes, uma amiga veio jantar com ele e trouxe-lhe um doce libanês de grão de bico, limão e especiarias do médio-oriente, e fui eu que acabei a prová-lo na insistência dela, no dia seguinte havia o boião do doce abandonado na mesa da sala e, além da minha colherada, estava intacto, ele até perguntou se eu gostei mesmo, ele não quis comer e eu percebi que ele fez uma desfeita à amiga, eu precisava de dinheiro para comprar o meu tabaco de enrolar e mostrei-lhe um livro meu auto-editado, ele leu um pouco, folheando, lendo mais à frente, quatro ou cinco minutos depois pousou o livro, disse-lhe o preço, ele disse que vale o preço mas preferiu propôr o dom mecenaico, eu disse que aceito encomendas, falei-lhe nas aguarelas e ele preferiu retrato e eu disse que retrato é difícl, as pessoas não se vêem representadas nas minhas telas, querem fotografia e depois não compram, falei: dom mecenaico era tu comprares-me o livro, preciso de comprar tabaco, ele ofereceu-me tabaco e cravou-me o isqueiro, perguntou se eu fazia versões ou cópias dos meus próprios quadros, que gostaria de ver como ficariam certos quadros, e eu disse que os originais estão à venda, escolhe um, não vou fazer experiências só para ver como é que fica e depois não comprares, trabalhar para aquecer não quero e ele calou-se, depois falou-se já não sei a que propósito das Capazes, denegrindo-as e falando que não passa de uma questão de classe social, a filha da segunda figura do estado não representa as mulheres do povo, mas para mim que nunca li o manifesto feminista das Capazes e que apesar de Capaz rimar com Rapaz, penso que as mulheres têm o direito de se quererem igualar aos homens ressalvando certas diferenças: posso até escrever o poema mas não estou na realidade a ver uma senhora de trinta e cinco anos a carregar baldes de massa subindo andaime de obra, acabo a perder-me no seu jargão semiológico de academia e a pensar que ele despreza a mulher, sai-se logo a seguir com a ideia que agora se um homem falar de homossexualidade sem ser um homossexual, isso é apropriação cultural, e eu respondo que apropriação e marxismo cultural são ideias de Direita, começo a compreender o seu pensamente e lanço a cana para desvendar, começo a falar como o homem branco tem oprimido as outras raças e ele fala-me que a teoria da raça é uma teoria cultural, e pede-me uma definição de homem branco, diz que esteve na irlanda e lá há uma distinção entre homens brancos, consegue-se ver quem é católico ou quem é protestante, e acaba a meter outras histórias de haver brancos até no Japão, de os japoneses não serem amarelos, de devermos culpar os mongóis de invadirem a europa e de agora se falar muito dos índios da Amazónia e se esquecer um povo quase xamânico e ainda indígena na europa e de quem ninguém fala, algures no norte da europa, talvez norte da Finlândia, aqui eu penso muitas coisas neste seu discurso, e quase me perco nos seus múltiplos argumentos, mas começo a ver que ainda há pouco, após elogiar o mrpp, já falava que era anarquista, e como falara do lifestyle, comecei logo a vê-lo como um lifestyle anarchist, vulgo anarquista individualista: para quem não há esquerda nem direita e o que interessa é o individual, o Meu [sic] bem-estar, mas agora ele começa a falar em ideias de direita puritana, é contra os árabes (e nem importa que sejam cristãos libaneses), fala mal da mulher, pergunta-me uma definição de branco para não discutir o mal do branco no mundo e o extermínio de qualquer índio ficando eu a pensar «ainda bem que não se fala desse tal povo xamânico no polo norte! pelo menos que os deixem em paz e não apareçam por lá, na terra deles, a tirar fotos, a deixar beatas e latas de coca-cola pelo chão», ele está atacado do que se começou a chamar de «entãosismo», um tique dos de direita, acabará por me saltar a tampa quando eu, um pouco antes, lhe digo que a raça é uma questão genética, ou seja, hereditária (querendo eu dizer que quando misturamos sangue nos tornamos multiraciais: o que é bom) e ele diz que a raça é uma questão cultural e que é a teoria que a esquerda defende e acaba por falar que conhece uma belga que começou a usar penteado afro e a usar autobronzeador e se assumiu transracial, ou seja, uma branca decide ser negra e declara-se negra e que isso é uma ideia de esquerda: o facto de a raça ser uma questão cultural, é o que o centro-esquerda diz, aqui salta-me o tal testo da panela e a água a ferver tira-lhe as penas todas: sabes o que é o branco?, não precisa de ser europeu nem católico, pode ser o brasileiro evangélico que jagunça em Brasília, pode ser o John Lydon em Las Vegas com a t-shirt do make shit great again declarando-se falido porque, digo eu, já os Dead Kennedy's diziam Nazi Punks Fuck Off, pode ser até o Colombo e o Alvares Cabral que invadiram a América, mataram-nos de gripe, tiraram-lhes a terra, o tabaco, o álgodão, o ouro, a prata, as mulheres, e como o índio prefere suicidar-se a ser escravo, importaram negros de Angola e Guiné porque negro mesmo levando porrada negro trabalha, e quem ganha é o proprietário e quem é o proprietário? é o branco, e quem é o escravo?, é o negro que trabalha forçado, [aqui o texto entra em modo corticose:] são milhões de europeus até brancos que são forçados a trabalhar por outro branco, e tu quando falas que em Portugal só há duas raças, a dos brancos e dos judeus desprezados, esqueces os mouros, os negros, os ciganos, e todos os que são trabalhadores assalariados de um patrão que invariavelmente é branco, e ainda tens raiva porque o chinês ou nepalês trabalha por um salário que tu que não te assumes como escravo não queres exercer, e tens raiva contra ele e lhe ganhas ódio.
Acabo a dizer-lhe que prefiro ser antifascista a ser anticomunista, e ele acaba a falar que tem qualquer coisa contra os antis, que ele prefere não ser binário, fala até dos activistas antigays e que não tem nada contra activistas mas antis... antifa, antigay... ele perde-se, e eu digo-lhe o que penso: um antigay é muitas vezes um homossexual reprimido, ele ri-se e tenta dizer um piada com os rapazes com síndrome de Down, mas como eu confirmo que a sua piada é verdadeira e que de facto, os mongolóides [sic] fazem amor como coelhos, o que é bom no meu entender no sentido em que têm uma vida sexual activa e o mais feliz possível, ele acaba por se desiludir com as palavras.
E ficamos os dois a olhar um para o outro, eu cofio o cavanhaque, ele dá-me o seu cigarro para eu fumar, eu aceito, dou uma passa e devolvo, ele coloca no cinzeiro, eu dirijo-me à cozinha para aquecer o almoço, volto à sala para almoçar sentado à mesa, nestes dez minutos puderam-se ouvir as gaivotas e o som da grua a trabalhar na rua, ele acaba por dizer: Disse alguma coisa que te incomodou?
-- O teu pensamento é ambíguo, é confuso, tu tornas impossível uma discussão séria, estamos a tentar solucionar a fome no 65 e tu vens dizer que há fome na Índia, e como não pudemos resolver o problema da Índia então também não pudemos resolver o problema da fome no 65, não sei, falas palavras e frases que eu não entendo, e eu não sou muito inteligente e por isso não sei se vale a pena falar mais contigo.
Saio, lavo a louça, recolho a caneca de café e venho para o meu quarto tomá-lo. Depois saio e vou levantar dinheiro para comprar tabaco, visto que o seu interesse em comprar-me um trabalho era nulo, até disse: não tentes vender-me nada antes do meio-dia. Volto e começo a escrever isto, ele lá em cima na sala a guitarrar, eu a fumar o meu descansado e a escrever, passado um bocado ele desce as escadas para sair de casa e diz que deixou tabaco na sala de estar, eu digo que não é preciso e que fui comprar, ah tábem era só história há bocado... ouço-o dizer ao bater a porta da rua.
-- Sim, meu palhaço, não preciso do teu dom mecenaico, de te fazeres meu patrão. Fui ao multibanco.
Mas esta frase já ele não ouviu. Quanto a mim, vou ignorar, e fazer-me de burro e preparar a próxima saída de Brooklin, ele faz parte de alguma minoria desprezada e sente culpa em se reprimir e não se assumir, tenho a minha própria opinião opinião sobre a questão fracturante que o persegue e que ele ainda não viu como solucionada e que o impede de andar direito na rua e não andar na ilusão de apenas comprar óculos para efeitos de estética, como me mostrou para eu ver se lhe ficavam bem. Vou ignorar a minha opinião pessoal, porque ele nunca me dirá qual a sua própria opinião, continuará a mandar anzóis à água a ver se eu os capto, não, não entendo nada, far-me-ei de burro, respeitarei, direi bom dia boa tarde, e sairei daqui para fora antes que ele vote no Chega, ele parece um negacionista.
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anónim@s do século XXIII
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