'
O Coronel Sardónia passou, lente e distante, pela rua fora. Quando Sardónia passava, o trânsito parava na Ingombota.
Os meninos ranhosos, de fralda esfarrapada, travavam com o freio de arame o arco feito de aduela de barril.
-- Dona Marina, o Coronel está a passar! -- gritava o mulato Xexé, travando o arco, matulãozinho já, mas agarrado ao brinquedo de criança.
-- Aonde, filhinho de Deus? Aonde? ... sacudia Dona Marina as nádegas opulentas na sua pressa. E limpava as mãos à matiné de chita.
-- Aonde, filhinho de Deus? -- tornava a "patroa" da casa mais conhecida da Ingombota.
-- Ali em baixo, Dona Marina. Ali em baixo, mesmo. Hoje traz um vidro no olho.
E trazia. Dom Belisário de Água-Rosada e Sardónia trazia monóculo.
-- Eh! Eh! Mamã ué! O Coronel vem mesmo com vidro no olho...
Dona Marina sorria desvanecida. Em nova, o Coronel Sardónia pretendera-a; mas ela fora na conversa do branco Bento, chofer do mato, que na altura comprara camioneta própria e prometia mundos e fundos.
-- Tu és mesmo uma mulher bestial...
E dava-lhe beijos de ventosa no pescoço. Marina não aguentara. E Dom Belisário de Água-Rosada e Sardónia, descendente dos velhos reis do Congo, ficara-se numa névoa cor de cada-vez-mais-névoa. Quando Bento acabou, Marina torceu-se para o Coronel voltar. Mas não podia ser, eh ué, mamã ué!
Sardónia casara por despeito (na igreja, mesmo), com a m'ssangana Dona Carlota Ferreira Kifumbe. Grande bomba! Marina, de coração um pouco amolgado, entrou na vida -- sua vocação -- e, durante uns anos, perdeu de vista o Coronel, que lhe contaram ter ido para S. Tomé.
Efectivamente, era verdade. Ali, Dona Carlota, a m'ssangana, passou-se. Paz à sua alma! O Coronel voltou e, sentimental crónico, procurou a antiga pretendida -- nesta altura já estabelecida e dando pelo nome de batalha de "Dona Marina". Desabafou, então, no seio já vasto, a sua aristocrática neurastenia. Teria mesmo espairecido nos seus braços os langores que continha desde o passamento da defunta. Contudo, nunca fora capaz de voltar a tratá-la por Marina. Subtilezas das almas eleitas! No escrúpulo do Coronel Sardónia, imperava sempre a recordação da falecida m'ssangana, que não amara -- é certo --, mas bem-tratara e fecundara pontualmente.
De resto, nem ele nem a antiga pretendida eram já moços. Ele era um cavalheiro de respeito e ela dona de casa conhecida e procurada.
Que diabo! Era preciso conservar o decoro! Que diriam as línguas do mundo? Por isso, ela -- com desgosto e mansa resignação -- ficara sempre "Dona Marina" nos lábios bigodudos do Coronel. Até mesmo nas horas em que este lhe desabafara a neurastenia no seio.
Porque -- isso era verdade -- o Coronel mantinha sempre inálterável a sua linha, fossem quais fossem as circunstâncias. Noblesse oblige.
E, para ela, Dom Belisário de Água-Rosada e Sardónia ficara também, e sempre, o "Coronel". Daí não havia que sair. (Dona Marina sabia-o bem, desde aquele dia de excepcional e humidade, em que de olhar líquido e narinas muitos abertas, acenando com a maçã bíblica, silvara: -- Zairito, venha cá... -- Dom Belisário distanciara: --Dona Marina! Permito-me aconselhar que se domine!)
Dona Marina habituara-se a essa distância formal, cheia de cumplicidades essenciais. E, como sempre, bateu as palmas num enlevo:
-- Eh! Eh! Coronel! Bom dia! Está bom mesmo?
E toda ela arreganhava a dentuça luzidia. Gente vendo. O mulato Xexé tirando do fundo dos calções restos mingados de jinguba. Maria Kadimba chupando tamarindo e enxotando na Kinda as moscas pousadas no doce de coco.
E o Coronel, solene:
-- Dona Mrina, como está?
Gesto lento e grave, a tirar o velho capacete colonial. Leve, muito leve (militar não dobra) curvatura de espinha. E continuando:
-- Acho-a com parecer cansado. Permito-me aconselhar que repouse mais.
-- Não posso descansar, Coronel. Tem muito serviço! Está a chegar barco de guerra! ... Mas entra, entra, Coronel! Senta! Não quer amparar?
E os olhos da Dona Marina prometiam secretos amparos. Sardónia sentiu a curiosidade do mundo. Maria Kadimba parara de enxotar moscas; o mulato Xexé já não comia jinguba. O menino Barroso vinha andando com denguice, correndo as pontas dos dedos no muro da viúva Silveira. O mundo está parado.
-- Impossível, Dona Marina. estou concluindo um trabalho sobre fortificações. No entanto, believe me, fico-lhe muito agradecido mesmo.
E despedindo-se:
-- Bom dia! Permito-me conselhar que não trabalhe muito.
Meditabundo e circunspecto, o Coronel foi subindo a rua. em cada falação, o Coronel permitia-se sempre aconselhar. Era estribilho. E, geralmente, quando o Coronel usava o seu estribilho, ele não dava bota, não. Porque o Coronel era acertado. Apesar da maluqueira e da bizarria, quando Sardónia abria a boca podia entrar mosca -- mas era raro sair asneira.
'
páginas 85 - 87
Amaro Monteiro
em
«Antologia do Conto Ultramarino»
edição Livros RTP
Sem comentários:
Enviar um comentário