'
-- Então me diga como correu a entrevista? Desculpe se não acreditei e me ri mas pensei que estivesse brincando...
-- Olha, ainda ontem o senhor me ligou para eu lhe esclarecer algumas dúvidas... mas eu acho que ele não me vai chamar...
-- Mais porquê?
-- Ora, eu fui para lá muito descontraído, cruzei a perna, até parecia que não precisava de trabalho! Lembrei-me de ti e do outro, aquele Sérgio, lembras-te quando tu me disseste depois que na entrevista com ele nesse dia estiveram a falar de negócios? Lembra? Como você parecia estar em igualdade com ele? Tu concorrendo a ajudante de cozinha e ele o patrão a contratar? Até me disseste que ele ligou ao chefe de cozinha a dizer que tinham encontrado a pessoa ideal? E no que deu?
-- Pois, mas eu arranjei coisa melhor.
-- Este senhor despediu-se de mim ao telefone dizendo «nós voltaremos a falar» mas eu acho...
-- É... deixa lá. Hoje gosto de você, gosto dessa camisa, lhe fica bem.
-- Obrigado, também a levei no dia da entrevista, hoje vesti-a porque fui votar.
-- Votou em quem?
-- Votei nos comunistas.
-- Não imaginava você comunista... você podia andar mais vezes de camisa, lhe cai bem no corpo.
-- Ó, eu sei que fico galante mas aí eu penso «pra quê vestir bem se eu não vou galar ninguém»...
-- Ah muito me conta...
-- No fundo, eu sou como você, eu gosto de andar vagaba, desportivo, sem preocupação, mas quando preciso eu componho-me...
-- O que eu disse é que não gosto de me vestir para estar em casa... sabe que agora me lembrei de minha mãe? Minha mãe hoje estava tão bonita, muito bem arrumada, eu disse: ó mãe, você vai passear? Não. E porque está arrumada? Mas pia! Ela não gosta de dizer mas olha... e eu disse: mas mãe... não é mas pia, é mas olha. e por acaso você é uma professora? Não sou professora não, mas a palavra é «olha» e não «pia».
-- Eheh
-- Eu disse a ela: quando eu digo uma palavra errada, a senhora me corrige, não é?, e ela: bico calado.
-- Eheheh
-- Eu disse: pois, aí fiquei pensando: a minha mãe, 78 anos, não vai passear mas mesmo dentro de casa, ela fica sempre bem vestida muito bem parecida, e eu pareço uma gata borralheira... é fodido não é?
-- Mas tu pareces porque queres, tu tens roupa bonita...
-- Mas por acaso, eu tenho algum prazer de andar bem vestida dentro de casa, prefiro ser uma gata borralheira, não tenho prazer de estar bem arrumada pra quê?, e pra quem?, ôxe deixa eu parecer uma gata borralheira, um dia aparece um príncipe meio doido olha sei lá!, a vida não pára, eu estou viva ainda, tudo tem a sua hora, agora não me dá prazer nenhum me vestir, me pintar, pra quem?, e com que propósito?, não, deixa eu assim que estou bem.
-- É como eu. Mas às vezes desmazelo-me. Tenho falado nisso com o meu novo colega de casa, ele veste sempre camisas de bom corte e com punhos ajustados pela costureira, ele preocupa-se com o parecer bem, tem tudo a ver com o seu trabalho, com o contacto com o público. Agora, com a internet e o feedback dos clientes, não queremos que a empresa receba uma avaliação negativa porque o serviço não estava de acordo, falei-lhe até de um chefe que tive, eu era um chavalo que não gostava de gravata, e ele chamou-me à parte dos nossos colegas, um dia no final do almoço e disse «Ru, tens de usar um fato e uma gravata, camisa branca de preferência, considera-o como o teu fato de trabalho, eu próprio tu vês-me hoje assim mas quando vou à discoteca, eu levo até texanas!, compreendes?»
-- É, a minha senhora também me enche de roupa, quer que eu a acompanhe sempre impeque...
-- Mas eu já me desleixei tanto no passado, chegava a ir trabalhar com camisas furadas, sabes?, mesmo a ver-se o brinde da mixaria, sabes?, doutra vez, eu tinha um casaco azul polar que gostava muito e andava sempre com ele por causa do frio, e lá no escritório, fui discriminado e senti-me mal, não fui mandado embora, vim pelo meu próprio pé, mas lembro as palavras, ela a queixar-se à chefe que eu cheirava mal... pois é!, eu nunca havia lavado aquele casaco, andava com ele há dois anos, os brindes a queimar uns em cima dos outros, parecia que não tinha mais nenhum, enfim...
-- Olha, eu estou a começar a separar a minha roupa, está lá em casa do governador no sofá da sala, vou dá-la a uma associação lá na Vendana que ajuda os pobre, para dar a quem precisa, vem aí o Inverno e o frio, tem muita gente que dorme na rua pá, eu tenho tanta roupa que não uso eu sei que tem muita gente que passa frio na rua, vou fazer uma coisa boa pelos outro, eu acho que é uma boa acção, eu pra lá com roupa amontoada, a gente também tem que pensar nos outro.
-- Sim, a minha mãe também recolhe roupa mas sim... entrega lá à porta de tua casa, que é sempre quem está mais perto de nós que a gente pode ajudar quem precisa, não é?, se a gente puder ajudar o vizinho...
-- Eu acho que estou fazendo bem a mim e ao próximo...
-- Sim... e por falar no governador, como está ele, já lhe contou?
-- Ele está doente, é o remorso, ele sabe o que fez, quando eu lhe disse que ia embora de vez eu vi as lágrimas rolarem pela cara dele abaixo, no dia seguinte me comprou estas botas e foi pagar o seguro do meu carro, mas eu lhe disse «não pense que vai me comprar com o seguro não, você me ameaçou de pôr na rua várias vezes e me pôs mesmo, que miséria me deu você nestes quatro anos?, não adianta agora chorar, é como minha mãe disse: deixa chorA!, não tem pena que água quente não tire, eu sou como a minha filha, ela tem paciência, eu espero um ano, dois anos, três anos e depois sou igual a Pandora, dou o bote.» Mas tenho pena dele, está com trinta e nove e meio de febre. Ele agora colhe o que semeou. Eu já aprendi a lição, gata escaldada tem medo de água quente
-- É... agora ele vai desaparecer da sua vida e do nosso livro, aliás acho que devemos pensar em terminá-lo. Não vamos contar a tua nova e futura vida, agora que o sol te começa a sorrir. Acho que deveríamos acabar o livro com o teu caderno de pensamentos, seria o anexo final.
-- Ele escondeu o caderno mas ele aparece, é só tomar um porre! Mas ainda falta contar a história do poste e dos macacos no poste, acho que foi o dia mais maravilhoso que passei aqui, que mais nos rimos eheheh...
-- Eheh quase que te dava uma congestão de tanto rir, foi quando eu disse que tu parecias como os cavalos que têm palas nos olhos para só verem para a frente! Mas eu já reparei que você mudou, hoje você agora olha todo o pormenor na rua, agora já olha para os lados, é..., vou pôr a gravar... já está, começa:
« ... mas essa vai ficar na história vai mesmo»
« ... é... eu a querer ajudá-la a não apanhar chuva»
«... mas é que eu não vi ninguém, só via tudo preto, tudo negro, negrinho da silva, eu não escutava barulho de carros, eu não escutava vozes, tu podia falar o dia todo ali que eu não estava te escutando, nem estava te vendo, nem estava vendo o poste, nem estava vendo a chuva nem estava vendo o guardachuva, eu só via o passeio, e portanto, aquele passeio só dava para eu andar, não dava para mais ninguém, e tinha um gaiato que na imaginação, na minha imaginação tinha um gaiato que queria tomar o meu passeio...»
« ... ihihih...»
«E... eu olhava para um lado e via preto, não via nada, olhava para o outro, ‘tava também negro, não via nada, e o gaiato queria me pôr fora do meu sítio!, eu disse cumué... eu vou botar ele para correr daqui para fora, ihihih e pus, meti ele no poste ahahah»
«Pois!, foi aí que eu me queixei...»
«Só dei conta quando ele disse que eu tinha atracado ele no poste ahahah»
«Mas tu nem viste poste nenhum!»
«Só acabei por escutar ele depois ahaha e aí eu disse olha que mentira cabeluda!»
«Eheheh ai que caralh...»
«Doeu doeu?»
«Ui por acaso não doeu...»
«Ahahah...»
«Porque eu tinha de levar o guardachuva na mão, e aí o que bateu no semáforo foi o meu braço, não foi o meu corpo não é?, a minha mão ia à frente a segurar o guardachuva, o que bateu foi a minha mão...»
«Mas se não tivesse o guardachuva... você tinha levado uma trombada ali...»
«Sabes que isso já me aconteceu uma vez?»»
«Mas não foi comigo!, ihihih»
«Tinha praí 17 anos ou quê...»
«Tava com quem?»
«Tava com os meus amigos vizinhos, nós tínhamos...»
«Mais eles fizeram como eu?»
«Peraí eu explico, foi uma coisa completamente absurda... nós estávamos naquela fase de ir comprar roupa às lojas sabes?, pares de calças, estava naquela fase meio beto, e então... eles iam comprar calças levis, coisas assim, calças caras de ganga, e eu ia com eles e com menos dinheiro, também naquela de pertencer ao grupo, eu tinha ganho dinheiro e ia comprar umas calças também, e era ali na Baixa, vê lá, nós fomos de autocarro, para nós era uma festa vir à cidade, e para mim também...»
«Pois era um bando de matuto!»
«E então, estávamos todos na rua, todos a falar e não sei quê e eu... ia a falar falar falar a olhar para o lado e de um momento Pum!»
«Ahahahah»
«Bato num parquímetro!»
«Eheheheh»
«Bati sabes?, mesmo no peito, sabes daqueles antigos mais baixos e de meter moedas sabes?»
«Ahahah queria estar lá para ver...»
«Bati e voltei para trás...»
«Claro!, não ia voltar para a frente ó intéligente!»
«Não claro... é que o corpo bateu lá e fez aquela...»
«Pressão...»
«Os meus colegas ahahaha a rirem-se...»
«Babaca.»
«É, às vezes queremos impressionar os outros e fazemos merda, por isso é gosto de estar na sombra. Fui bem gozado nessa tarde...»
«Olha... eu queria estar lá para ver, eu cagava de rir...»
«Pois é, fazias como eles...»
«Ah pois... eu fazia como no outro dia do guardachuva em que você levou uma trombada...»
«É... tu quase que morrias a rir a seguir... quando eu te expliquei o que tu fizeste, partiste-te a rir, parecia que ia ter um chilique, um ataque cardíaco é...»
«Ahahah pena foi eu não te ter visto, um dia vou contar às minhas neta ah vou vou, elas vão cagar de rir, é sim senhora, esse foi o dia mais engraçado da minha vida, eu nunca ri tanto, sinceramente...»
«Nunca se meta no caminho da Shivana eheheh»
«Ihihih isso é so o começo, se se meter no caminho dela ela atropela, ui nem é bom, me faz lembrar o Brasil, eu e o imperador da primeira vez que eu fumei com ele, nós fumámos em casa e depois saímos, nóis ia na rua para ir para a discoteca que era a Broadway, nois caminhava, dum lado bares, do outro igual, e eu reparava, e via os postes de luz, os candeeiros, e em cima de um poste havia um macaco, eu caminhava e só via macacos, em cada poste que eu passava lá estava um, e eu dizia ao imperador, e ele perguntava: você está se sentindo bem?, e eu dizia: tou vendo macaco, ele estão a me observar, ele dizia não, você está vendo coisas, e eu ficava com medo que os macacos não me deixassem entrar na Broadway...»
«Porque tu pensavas que os macacos...»
«Sim... que iam me prender por eu ter fumado marijuana eheheh»
«Eh, às vezes dá esse efeito, a gente imagina coisas.»
«A Shivana atropela... naquele dia contigo de tanto rir eu quase que faço chichi nas calça, foi me’mo, a Shivana atropela, é por isso que eu era dona da escola, praticamente os menino quando me via saltavam o muro na hora do recreio, olha vamos embora que ela vem aí, era mesmo era, eu estou falando sério, quando a professora estava dando a aula antes do toque de saída eu me levantava para ir ao banheiro, e então, pegava um lápis e começava pela carteira do fundo furando eles de lápis, eu fazia tipo um ésse, uma ziguezague, uma estrada, e só depois que furava o último é que eu ia pra casa de banho...»
«Eh...»
«Mas quando eu voltava eu ia de castigo, na hora da merenda eles comiam descansados mas na hora da saída eles tinham de pular o muro, quando eu levava suspensão de três dias em casa eu ia para a directoria, para a directora, a Dona Eusébia, todo o mundo falava mal dela, que era osso duro de roer tásaver?, botava os meninos de costas e virados para a parede, e a mim... eu olhava assim para a cara dela, baixava a cabeça e começava a rir, pegava a borracha dela, e um lápis de tinta, daquele azul, na altura tinha um programa de televisão, que era assim: Mulher TV, e eu botava: Dona Eusébia directora mulher tv, e depois sentava, ela ficava de pé, escrevendo não sei o quê, falando com a mãe de um aluno qualquer, o quê, eu cruzava as pernas, sentava na cadeira da directora e ficava igual a uma patroa, cabeça erguida toda dura toda imponente, e ela virava para mim depois que a mãe do aluno saía, e dizia: Qu’é que você está fazendo aí?, eu dizia: Eu estou vendo a senhora trabalhar!»
«Ahahaha»
«Ihihih pra eu aprender não é? Ela dizia: olhe, vá masé embora e depois amanhã, vem para a escola estudA e se não estudA... aí quem vai dar suspensão sou eu, não é a professora. Eu dizia: Tábem obrigada até logo, já fiz o meu expediente, agora vou embora para casa, trabalhou bem, é isso mesmo!»
«Ih era isso que dizias à professora?»
«Não, à directora. Quando era no outro dia, não ia para a escola, ia directa para casa dela, tomar café com ela...»
«Tomar café com ela?! Ihihih»
«Ela telefonava pra minha mãe, na altura minha mãe tinha telefone fixo, Shivana tá aí? Eu gostaria de falA com ela por favor. Primeiro, ela dava bom dia pra minha mãe, não é?, era bem-educada, era directora de um colégio, gostaria de falA com ela por favor. Eu chegava ao telefone: Bom dia, estou cheia de sono, não fui pra escola hoje, estava cansada e dormi demais. Era tal e qual assim o que ela respondia: olhe, tome banho, e venha a minha casa que eu quero tomar o café da manhã com você. Mas a propósito de quê? Ó directora, não pode ser por telefone? Não... porque eu quero conversar com você sobre ontem! Estou lascada... eu cá comigo eu estou lascada, eu vou ficar mesmo de suspensão... E depois, a mulher pegou um tal amor por mim que queria que minha mãe passasse um papel, assinasse um papel para eu ir morar na casa dela, para ser como filha dela. Eu disse cumué! Nunca na vida! Deixo meus pais nunca na vida, só se Deus os levA. E a partir daí, eu comecei a ir para casa dela, dormir na casa dela, almoçar na casa dela, e a aprontar na escola, um dia... me botaram pra correr de lá! Tu sabe da escola das freira em que eu mandei as freira tomar no cu quando eu levei um choque eléctrico e quase que caio dentro da cisterna de água, eu disse à madre: olhe, vai tomar no cu, que eu não estudo mais aqui, vocês deixaram a cisterna aberta e eu levei um choque e fiquei com a cabeça do dedo inchada de pôr na tomada, ficou desta grossura a ferida. A madre chorou tanto pá, eu disse: não adianta...»
«Eheheheh»
«Fui expulsa porque mandei tudo tomar no cu, estudei nas escola toda, ninguém me quis lá, eu disse: melhor assim que eu não tenho de aturar ninguém, não gosto de vocês mesmo, mentira!, eu gostava de tudinho mas não dava o braço a torcer, mas eu gostava delas toda, e não tinha um Dia da Professora que eu não desse um presente chique, na altura os meus pais tinham condições, minha mãe vivia de confecção meu pai era marchante de gado, ah fôdasse foi o tempo melhor que eu passei, eu era ruim quando era adolescente: leu escreveu o pau comeu, eu era menina ruim, por isso é que eu estou pagando ihihih»
«É... por isso é que hoje estás pagando...»
«Olhe... brincar com o coração dos outro ihihih eu já te falei de uma cubana que tinha um bar em Cochabamba, uuuuui o que eu não bebi de graça ihih eu bebia os melhores uísques que ela tinha ihih no final ela sempre queria dançar comigo... mais menino olha, comia de graça, bebia de graça, cada petisco bom ui e no final queria dançar comigo: e desde quando eu sei dançar cubano ihihih eu não sei dançar não, eu sou pé duro. E acabava por não ir, ai não... e na Venezuela, que a patroa me dava dinheiro para dançar em cima do balcão!, olha pra isso, a dona do bar, olha pra isso, olhámerda...»
«Pois, eras empregada dela, aqui quando eu ia às discos também havia empregadas contratadas pela discoteca para dançar em cima das colunas... para nós... chavalos, a olhar todos extasiados elas ali e íamos logo beber mais uma cerveja para ganhar coragem, faz tudo parte do negócio...»
«Você não entendeu...»
«Pois, ela punha-te em cima do balcão, era para tu atraíres os clientes a beber...»
«Você não entendeu o espírito da coisa, ela queria que eu dançasse em cima do balcão mas era quando todo o mundo fosse embora...»
«Ah pois era...»
«Você não entend...»
«Era um show privado que ela queria...»
«Ela tinha bom gosto, eu também gostaria que me fizessem um show privado eheheh»
«É o que eu digo... você acha? Danou-se!»
'
anónim@s do século XXIII
Sem comentários:
Enviar um comentário