segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

A pirata invisivel [repost]

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1.
A pirata invisivel encontrou um maleiro negro
com dois metros de olhos bem grandes e verdes
com cinquenta e um camelos monstros mais quatro helicópteros,
quatro bicicletas voadoras quatro porcos a andar de bestacleta com asas

2.
Uma tarde de sol e praia na balada
um bom drink uma boa conversa uma boa piscina
P'ra tudo acabar bem:
umas lentes azuis para ser gémea com ela

3.
Visitar museu, conversar na galeria, comprar lotaria
de corrida de cavalos para apostar.
Quando chegava a hora dela chegar
                                             eu dizia:
-- Eu faço teatro mas eles não me dão o papel,
    vou tomar banho e vou embora e volto depois.

4.
Quando ela descobriu e ele descobriu
eu disse: - Batatas para o trabalho!
Ele o maleiro negro de olhos verdes a mim escolheu
Eu tive a desforra e ela não mais comigo falou

5.
Balada todos os dias
A vida que ela não teve
Mas eu pensei no menos que havia no mais,
limusine mandada vir para me controlar?, disse:
- Jesus jenésio cachorro cash
Onde é que eu estou?
Pá, quero a minha liberdade!

6.
É por isso que eu vejo muito filme de terror
Se achaponou dansou
Aqui se faz aqui se paga
Foi ela quem dansou
Mas eu me lasquei no fim
Ele foi para debaixo da campa
e eu estou aqui de penico cheio p'ra contar a história.
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Anónim@ do século 23

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

sábado, 18 de dezembro de 2021

As camisas de dormir

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19h 38min

Acabo de jantar, tomei café de cápsula e quero escrever mas, hoje e agora, não tenho tempo, tenho de sair daqui a pouco para trabalhar, tenho de escrever um pouco sobre a cega dona A, ela não o será de nascença, terá cegado por causa dos diabetes, a cega vai-se embora, o quarto que lhe está prometido noutro lado fica vago no fim do mês, ela ameaçava sempre que se iria embora mas chegava ao início de um novo mês e renovava a mensalidade, desta feita, há três dias, o patrão da casa, senhor Ja, depois de eu entrar ao serviço, disse-nos para o acompanharmos e bateu à porta da dona A, disse-lhe e nós ouvimos: 
-- Dona A, os meus funcionários recusam-se a ajudá-la mais, a senhora tem-nos acusado injustamente, tem incomodado os outros hóspedes com a sua voz alta, tem feito queixa de nós à vizinhança... por isso, peço-lhe que a partir de amanhã procure um novo sítio para ficar e a gente devolve-lhe o dinheiro que já pagou.
-- Não posso sair amanhã, a senhora que me prometeu quarto diz que só depois do fim do ano, e não é verdade que eu tenha falado mal ontem: só queria que me tivessem ligado a televisão!

Aqui, precisaria do tempo, que agora não tenho porque tenho de sair e caminhar para a paragem do autocarro, para explicar como se chegou a uma expulsão a prazo e por mútuo acordo: 
Numa manhã, às seis horas fui acordá-la como habitualmente batendo-lhe à porta, ela respondeu-me num tom de voz agressivo, talvez tivesse dormido mal, pensei. Às oito na hora de lhe aquecer o leite com cevada, ela reclamou que estava frio e recusou que eu lho fosse reaquecer, disse que o ia deitar fora, recusou que eu lhe guardasse no esconderijo a cevada e disse-me para eu lha dar para a mão, ela própria a guardaria, depois repararei que ela nos estava a acusar de lhe termos roubado as camisas de dormir.
-- As camisas de dormir... ó dona A, quem lhe quereria as camisas de dormir?
Para ela foi o limite, já se havia queixado que lhe roubaram um casaco, e que lhe tentaram arrombar o cadeado de um saco, outras vezes queixava-se da falta de limpeza e pedia-me para eu lhe pôr lixívia na sanita, e se do saco se pode dizer que estava super cheio e que se estragara devido ao modo como nele pegam... do casaco nem sinal, nunca se soube se não seria um que ela lá tinha e estava a inventar um casaco roubado ou se ele estaria perdido num esconderijo qualquer, ninguém lhe quereria nem o casaco nem as camisas de dormir.
Contei o que se passou à senhora Ai quando ela chegou para me substituir, ela disse que a dona A teria de se ir embora, que já nenhuma pensão a aceitava. Fui para casa descansar e voltei à noite, fui ao seu quarto ver se ela precisava de alguma coisa, ela berrou Não, que tinha comido a sopa fria, berrou para que eu lhe apanhasse a roupa da corda e lha pusesse na janela. Como passava um hóspede no corredor, eu deixei-a a berrar sozinha, fechei-lhe a porta na cara e fui apanhar-lhe a roupa, ela queria como muitas vezes a porta aberta e ficou ainda mais fula, eu voltei com a roupa seca para lha entregar e ela não me abriu a porta, vingou-se e mandou-me colocar a roupa na janela do seu quarto que dá para as traseiras onde a roupa seca, sempre aos berros, aqui eu não disse nada, fiz o que ela mandou mas fiquei a pensar que ela é má, que não pode berrar aos funcionários nem aos outros hóspedes, que ela está a retaliar, a abusar da confiança que lhe dou: não a ajudo mais nem que esteja a morrer!, pensei. Voltei ao pouco serviço, terminado este sentei-me no sofá a ouvir rádio. 
Por volta da meia-noite, comecei a ouvi-la de novo aos berros, decidi ignorar mas o sr. Ju ligou para a recepção dizendo: sr. Ru, cale-me esta mulher. Obrigou-me a tomar uma atitude e eu fui calá-la, como estava fodido com ela, primeiro ameacei chamar o patrão e ela disse que ia fazer queixa na polícia, depois disse que ela não deixava os outros hóspedes dormir e ela disse que eu só dormia, até que só resultou à bruta: berrar mais alto que ela, sem a insultar calei-a, mas senti-me mal porque fui obrigado a ser autoritário.
( Depois continuo...)

21h 27min

Já estou ao serviço, estou sentado no novo sofá de descanso, hoje nada tenho para fazer além de eventualmente receber novos hóspedes, com a covid a casa está quase vazia, por isso tenho tempo para terminar o texto, ia no ponto em que recorri ao grito para calar a cega, ela dizia que o W é que era bom para ela e eu berrava o mantra: a senhora pode falar mais baixo!, ela dizia que eu dormia e eu repetia o mantra, ela abria a boca e eu berrava o mantra, até que ela desistiu e calou-se e deixou a casa em paz.
De manhã quando o chefe chegou para verificar as contas eu disse o que se havia passado, que não ajudaria mais a cega, que lhe havia dito: eu não sou seu criado.
-- O senhor disse isso? Fez muito bem, diga tudo à minha filha quando ela chegar. Foi o que fiz, ela falou que o W roubava o patrão, que a dona A teria que ir embora de vez, eu disse antes de sair do trabalho: a dona A é mal-agradecida, mal-educada e mentirosa.
À noite, o patrão foi ao quarto dela e falou-lhe, disse que ela tinha de sair, ela disse sim e defendeu-se dizendo que só bebe uma garrafa por noite, lá lhe chamaram à atenção sobre o efeito do vinho, ela disse que só tinha querido que lhe ligassem a televisão. 
Passaram-se três noites e não me senti muito bem comigo próprio, até comentei com o sr Ju que saio à minha mãe quando quero ajudar alguém mas que saio ao meu pai quando me zango. Não a ajudei mais, as minhas colegas de trabalho do turno do dia começaram a fazer alguma coisa mais pela cega e a não deixar tudo para à noite eu fazer, o patrão ia-me falando que era uma obra de caridade eu ajudá-la, até que ontem, a cega chama por mim às onze da noite.
Sem nada para fazer e para ela deixar os hóspedes descansar, fui ter com ela e ver o que ela queria. Ela estava a pedir para lhe ligar a televisão, falou baixinho, depois pediu que eu a voltasse a acordar de manhã e lhe levasse o leite e a levasse à rua pois ela tinha uma consulta. Lá fiz tudo isso, hoje até lhe fiz uma visita guiada: agora está a passar no coberto onde se põe a roupa quando chove, agora está a passar à frente da sua janela, a sua roupa fica sempre em frente da sua janela, o portão é agora, cuidado com o degrau, chegamos ao passeio, eu entrego os taparuéres, logo à noite voltarei para ver se precisa de alguma coisa.
Hoje à noite, disse à colega que eu substituo à noite: voltei a ajudar a ceguinha, ela falou de modo educado. Ao chefe e patrão sr Já disse: eu estava com um pouco de remorso. Ele respondeu: ela é mazinha, ela vai até onde a deixarem ir, não deixe que ela abuse.
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Claudio Mur

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Um agradecimento sincero

A pessoa em questão sabe que lhe agradeço, transcrevo de um livro que ontem me ofereceu:

"O artista só é artista se for duplo e se não ignorar nenhum fenômeno da sua dupla natureza"
Charles Baudelaire em "A essência do riso"

No livro "Doble" de Saguenail na editora Exclamação

Um dia haverá exposições de flores no nevoeiro, preveniu-me numa k7 a voz do Cesariny

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Navegação e floresta

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Ainda fica por apontar a possibilidade de um erro -- estamos a pensar na confiança na imaginação pura. Conceda-se que ela conduz à vitória espiritual. Mas isso não pode depender da fundação de escolas de yoga. E, no entanto, é essa a ideia não só de numerosas seitas, como também de uma espécie de nihilismo cristão, que dá a coisa de barato. Não, podemos, contudo limitar-nos a reconhecer o verdadeiro e o bom nos andares superiores, enquanto na cave a pele é arrancada ao próximo. E também não o podemos fazer, quando nos encontramos espiritualmente não só em posição mais segura, como também numa posição superior, e isso porque o sofrimento inaudito de milhões de escravizados brada aos céus. O fumo das cabanas dos algozes ainda está no ar. Coisas destas não se encobrem com farsas.
Não nos é dado, por conseguinte, demorarmo-nos na imaginação, mesmo que seja ela a dar a energia fundamental às acções. Uma uniformização das imagens e uma decadência das imagens precede a luta pelo poder. Esta é a razão pela qual nos instruímos com os poetas. Eles iniciam a subversão e também a queda dos Titãs. A imaginação, e com ela o canto, pertencem ao passo da floresta.
Vamos regressar à segunda das imagens por nós irmanadas. Quanto ao mundo histórico em que nos encontramos, ele compara-se a um veículo que se move rapidamente e que ora mostra sinais de conforto, ora sinais de horror. Umas vezes é o <Titanic>, outras o Leviatã. E é porque aquele que é movido é enganado pelos olhos que, para a maior parte dos passageiros do barco, continua a ser um segredo pertenceram ao mesmo tempo a um outro reino, no qual prevalece a tranquilidade perfeita. O segundo destes reinos é tão superior que conteria em si o primeiro à maneira de um brinquedo, como um daqueles casos cujo número é infinito. O segundo reino é porto, é terra natal, é paz e segurança, que cada um traz em si. Chamamos-lhe a floresta.
Navegação e floresta -- pode parecer difícil unir numa imagem duas coisas tão longínquas. A oposição é mais familiar no mito, assim Dioniso, raptado pelos barcos tirrénicos, faz as videiras e a hera cativar os remos e brotar pelos mastros acima. Da sua mata espessa irrompeu o tigre, que despedaçou os raptores.
O mito não é uma pré-história; é uma realidade intemporal, que se repete na história. Conta-se entre os bons prenúncios o facto de o nosso século encontrar de novo sentido no mito. Também hoje o ser humano é arrastado por vigorosas potências até ao alto-mar, até ao fundo do deserto e do seu mundo de máscaras. A viagem perderá o seu carácter ameaçador, se ele se lembrar da sua força divina.
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Ernst Jünger
em 'O passo da floresta", páginas 50 - 51
Tradução de Maria Filomena Molder
Edição BCF Editores

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Últimas palavras atribuídas a manuelle biezon

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Eu justifico-me ou com as melodias em papel areia de gudrun dh virgin prune lawrence ou com as palavras do blixa: mein kopf ist ein labyrinth mein leben ist ein minenfeld.

A minha violência é sobretudo mental, sou mais parecido com um cão que ladra do que com um cão que morde, eu sublimo a violência do tó desabafando ao papel, não me fico pelo oral insulto gratuito de expulsão quase vómito, passo para o papel e envio por carta registada às vezes em linguagem de insulto, às vezes em registo formal conforme a emoção do polícia interno de folga. Se sou doente maluco não me escondo na doença dizendo que não me lembro do que fiz. Claro que não me posso lembrar de tudo, aliás produzo a prova, a evidência do meu próprio acto, do meu erro perante a lei, posso não gostar da lei mas não me faço vítima dessa lei. Boicotemos a cultura do chui e comecemos pelo nosso superego!

Sei hoje em que lado da barricada poderei estar quando um bófia reprimir as verdades e os desejos de um futuro e em que café estarei quando um serviço de ordem de um sindicato reprimir as verdades e os desejos de um futuro.

Sei que, às vezes, não é possível aceitar o contrato social.

Sei que, se fosse bajulador, talvez vendesse livros brochados e pudesse ser considerado um «escritor a sério».

Sei que poderia ter muitos amigos se os que em mim procuraram mel não tivessem sido mandados à merda.

Sei que a minha técnica é fraca. Sei que me vão faltando ideias absurdas para livros onde falta a conveniência pessoal.

Sei que sou o possível que posso ser, sei que tentarei ser qualquer coisa mais e sei que prefiro ter uma cana de pesca do que jogar na lotaria para tentar Ser.

Não sou pedinte por enquanto, vendo um produto quando preciso de ir ao supermercado mas não me quero sentir um produto, apenas um produtor e não apenas um dealer de techno em timbuktu ou em qualquer derza deste planeta.

Sei que posso não ter uma razão científica para o que penso, para aquilo que escrevo parecer replicado com nuances em realidades que se tornam conhecidas pelos mass media.

Sei que tento fugir à noção hermética «algo de bom acontece e algo de mau se replica».

Sei que assumindo-me como zmb o zumbi, transcendo esta definição de morte a cada momento que vivo e que se eterniza pelo uso daquilo que chamam de aspirinas para reescrever ecos de um passado não tão distante assim.

Alguém que parece personagem de filme, ecos de uma casa que renasce a cada momento, a ilusão numa fé ou qualquer outra espécie de esperança, em algo vindo de dentro e expandindo-se para ti num local onde respiramos em comum, um local cheio de estrelas…

moon shine and moon landing, estrelas e asteróides em constelação dizendo ser possível viver cada momento como se este fosse único,

ecos de memória como se esta existência não tivesse fim, tigre! tigre!,

a cada momento perdido no tempo e deslocalizado recebendo feedback sem destinatário assumido e quão ilusório é ser comentado.

Às vezes, não passo de um potencial instrumento jogado na arena a bel prazer conforme as circunstâncias.

Antes de ser pó, gostaria da gratificação pela possibilidade do dia eterno. Depois de verdadeiramente pó, serei apenas pouso de abutres, um hobo sem qualidades de futuro acesso livre no archive ponto org.

Eu sou mais que a minha função mesmo que, às vezes, perdendo a minha noção de função, pense que não existo porque quem não aparece não existe, eu não pertenço nem aqui nem a ti, pertenço à grande nação zumbi vinda de marte, como eu prisioneira do verbo liberdade, das facas esquizóides do indivíduo e dos gunas dependentes do social.

A verdade é que nunca ouvi vozes dizendo-me para esfaquear, a minha violência é mental, sou apenas um cão que ladra e, entre eu levantar a saia da marlene na caixa do minipreço em pensamento e o acto de efectivamente o realizar, vai uma distância que só estudando bem o objectivo tal alguma vez se concretizará, eventualmente, a canábis tem a sua função de divindade, de intoxicação, de quality time imaginal. Se imagino não preciso de o fazer. Poderei não ser aquilo que escrevo mas escrevo a maior parte das vezes o que quero volver.

Desde que se descobriu que deus não era um só e podia ser qualquer um de nós, desde que a verdade se relativizou democraticamente, não me desejo vítima nem de mim próprio. Serei talvez um género em evolução dentro de mim próprio.

A sequência da minha narrativa pode começar em alhos e terminar em bogalhos dando a ilusão de um artifício começando no nome de um morto-mas-vivo, aquele estado tanto dentro tanto fora da realidade, da sociedade. A psicose de sentir o imã do meu próprio ser faz-me intuir talvez que me desejas numa passerelle de jet set literário mas opto apenas por passar ao lado nem que, por causa disso, te não tenha.

Eu não sou um anjo nem um santo nem um profeta tendo a ilusão de vir salvar o teu mundo, eu não sou já nem resistente nem desistente, apenas resiliente: eu sou apenas eu e sou já alguma coisa vencida a culpa, o remorso, o ressabiamento.

Tenho uma causa, um programa privado, pessoal e de consciência psicológica e social, eis o manifesto de um só subscritor: às vezes, ponho-me a pensar se as minhas palavras não são escutadas pela percepção do cliente regular. Às vezes, sinto que transmito as minhas mais secretas ideias através de telepatia inconsciente julgando pelas palavras recebidas através do regularmente diário feedback. Às vezes, é difícil sobreviver a coincidências estranhas no que digo passado e observo futuro mas… encontro já a saída e começo a ver a luz. Não me sinto já influenciado por ninguém que não eu próprio, afasto-me do feitiço mesmo que ninguém que não eu próprio o tenha lançado. Não acredito, apenas porque não o sei explicar, mas escrevo que a minha mente é uma onda cool de rádio emissora e retransmissora, um tributo à get-out-of-bed radio, toda uma literatura já escrita, não sonhamos todos com um ficheiro secreto? A verdade é que posso psiquicamente intuir o manifesto que the shamen me oferecem aos ouvidos então com dezoito verões, partilhá-lo mesmo contigo: my kind is yours omega amigo for you I will always have time.

De igual modo se, por acaso, virem no vosso bairro o tone malaiko vendendo qualquer zine ou mesmo uma boneca insuflável — para que cada cruco tenha o seu mur — troquem com ele uns ossos e a moeda, vá lá!, como taxa de sacrifício. Ele saberá como muitos rir-se de ter perdido o medo de viver fragmentado, de lhe chamarem de louco ou drogado ou até mauricinho, estes ding an sich são sempre úteis mas relativos, absoluta será a moeda para nós, os tones. Claro que assim, ele ou mesmo eu poderei ir buscar o meu genuíno meio conto de kenga e, para tudo o que verdadeiramente interessa, haverá sempre fêmeas que me completem. Se não as houver, inventá-las-ei pela imaginação: uma fêmea será sempre uma fêmea, uma mulher invisível um dia tornar-se-á real. Fiesta! Um desejo imortal.

Oub’lá filho se eu, teu pai fantasma sideral e adoptado, posso até nem ser descendente de qualquer raça mítica ou mitómana, a verdade é que não sendo cigano sou tratado como cigano apenas pela aparência de inteligente mas com um modo de vida pouco esperto. Num país que não gosta dos amigos de jacques leonard, eu posso até tentar adaptar-me a esse mundo porque preciso de trabalho mas este mundo só me aceita quando eu consentir em deixar de ser quem sou, e quem sempre quis não parecer, para simplesmente passar a parecer um deles porque um escravo nunca é, apenas parece e quem não aparece não existe, está nos livros.

Por isso, meu filho aprendiz de fantasma, como disse a doninha em celebração no hard club há muitos anos num anterior fim-do-mundo: se queres respeito puto dá-te ao respeito [,respeita] e assim terás o respeito a que tens direito.

Quidditas?, haecceitas. O que é? É isto.

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manuelle biezon

sábado, 4 de dezembro de 2021

Código de conduta

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Acaba de tocar à campaínha o novo hóspede, um cliente antigo chamado J, abro-lhe a porta e, lembrando-me do comentário quase desabafo da dona A na noite anterior, digo:
-- Sr. J, se o senhor a meio da noite ou a qualquer hora quiser beber uma cerveja e eu estiver a dormir... o senhor chame por mim, não há-de ser por eu estar dormitando que você não vai beber, chame por mim, eu atendo-o e vendo-lhe a cerveja, ok?
-- Ah, sr. Ru, obrigado, ainda ontem... devia ser meia-noite... estava sem sono e apeteceu-me... mas depois pensei: o sr. Ru deve estar a dormir...
-- Oh, sabe como é, são muitas horas, a gente encosta a cabeça, os olhos fecham, passo pelas brasas. Mas eu estou aqui para trabalhar, dormir durmo quando saio e chego a casa.
-- O sr. mora aonde?
-- Agora voltei para casa dos meus pais, morei dez anos em Derza em quartos, cansei-me das rendas e da solidão...
-- E então... e a mulher?
-- Não, mulher não tenho, o mais parecido com namorada é uma amiga especial que eu tenho...
-- Filhos tem?
-- Nenhum, sou livre!
-- O senhor sabe inglês?
-- Sei.
-- Vá-se embora daqui!
Eu percebo que ele quer dizer que eu sou sobre qualificado para este trabalho e digo: -- Não! Eu estou bem aqui, há dias falou das condições fracas do meu descanso, o sofá, o frio e tal, não se preocupe, eu estou aqui bem!
-- Olhe, eu há dois anos estava em Inglaterra e desde então... já me divorciei, já namorei, já casei, já fui ao Brasil... quando lá vou fico no hotel do money, aquilo é que é, tem prái 100 quartos, bons pequenos-almoços, foi em Fevereiro, telefonei de lá para a dona A pedindo um quarto e depois cheguei a Lisboa, não tinha telefone mas tinha a reserva...
-- Por isso lhe digo, sr. J, e já aconteceu antes: o sr. chegou, fez um pouco de barulho e eu acordei e servi-lhe a cerveja... por isso, se precisar, pode até... não, claro que não, ignore a minha sugestão de me dar um pontapé, chame por mim: sr. Ru, se eu não ouvir chame de novo e eu acordo, ok?
-- Estava em Inglaterra e a mulher disse que me ia deixar e eu disse tá bem que sa foda vai-te embora, não havia trabalho, veio a pandemia e eu disse: vou visitar a família, estive aqui dois meses, depois arranjei uma namorada da Covilhã mas ela já pensava em casar e coisa e tal, até que estava numa garagem maior que este hotel, numa festa em casa da minha irmã, cerca de vinte homens a dizer asneiras e eu disse que sa foda, vim fumar um cigarro e encontrei-a, casei, ela até já dormiu aqui e tudo.
-- O sr. sempre vai querer uma cerveja?
-- Sim, quer uma para si?
-- Não, obrigado, mas não bebo em serviço.
-- Se eu lhe pagar a cerveja, isso não significa que vou dizer ao patrão...
-- Claro que não, mas a gente tem de ter duas caras, aqui no trabalho não bebo, lá fora é outra coisa, é o meu código de conduta.
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Claudio y

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Entrada dia 26, 10h 24min

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Hoje, escrevo a esta hora da manhã porque estou sem sono, recebi no autocarro há meia hora um telefonema do meu último vizinho em Derza, ele perguntando como fazia eu para pagar a conta da luz, expliquei e aproveitei para lhe perguntar por um quadro em pano cru: O Aprendiz, não o encontro comigo aqui e talvez o tenha deixado lá na mudança, ele confirmou que eu o deixei mas não garante que ele, quadro, ainda exista, após a minha saída o quarto recebeu obras e agora está ocupado por um casal de activistas trans, ele disse que ia ver e que depois informa, tentei saber de um burrofone Nokia que também me falta mas ele não se recorda.
Enfim, se não me avisaram até agora, e já passaram quase dois meses, que lá deixei um quadro na parede, também deram sumiço no burrofone que já funcionava mal nem tinha cartão sim, mas tinha mensagens e números de telefone e era ainda um gravador de áudio, dava jeito não o ter perdido, ocorre-me que ainda não verifiquei todos os bolsos dos vários sacos de viagem, quem dera que lá estivesse, talvez sim talvez não, senão mais um dano colateral da década em Derza, a saber: um minidisk, uma máquina fotográfica, um caderno A4 inteiro com desenhos a pastel, um computador, tudo roubado, e agora, mais um telemóvel e um quadro em pano cru, roubado ou desaparecido: kill yr ídolos, rob them, mata os ídolos e rouba-lhes a glória, era a juventude e a sua ideia, quando novo alguém até me contou que apalpou os guizos do Burroughs velho em A'dam quando ele lá ia abastecer. Agora, mais velho, verifico que já me estou tornando um ídolo, ou pelo menos um trouxa com alguns valores mobiliários apetecíveis para serem esmifrados, sinal dos tempos: de miúdo de rua a tio na mata: mudei mesmo de vida.
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Claudio Mur