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Os agentes não interferem com o trabalho dos outros agentes, acabam por dizer: cuidado com o corrimão, procurem o lucro rápido porque o tempo vale dinheiro. É quase como dizer: se poderem continuar a mamar, pois então continuem e mamem. A Graça espera que a noite acabe rapidamente, está sentada num banco alto junto à parede de pedra e fuma.
Fuma.
O Jaime joga xadrez.
A amiga da Graça saiu de cena entretanto.
Claudio já não se recorda da sua face entretanto, a face da amiga da Graça e, portanto, lembra-se dela como sendo a amiga da Graça até ao dia em que a reconheça e lhe tire a fotografia. Mas talvez ela não venha mais.
Dois homens de bigode grisalho passaram acompanhados das suas consortes.
Desapontei-a talvez. A quem? À Graça ou à amiga da Graça?
No lado esquerdo da esplanada alguém lê alto para quem o quiser ouvir, algo muito peculiar em Derza: Os homens bebem vinho porque têm pudor de ver uma mulher a ter o período e porque têm curiosidade ao ver um penso higiénico não descarregado numa retrete pública e não porque Jesus Cristo bebeu vinho na última ceia.
E depois continua ainda para quem o quiser ouvir, algo muito peculiar em Derza: Ele podia ter fumado hashish. Mas é bem capaz de haver outras teorias…
Junto à porta de entrada continua sentada a Graça. Calça sandálias com fivelas de couro claro e as suas pernas sem meias de seda sobem por debaixo dumas calças com ruído em cima das listas horizontais em tons de castanho. Os seios estão escondidos debaixo do casaco de ganza agul, o rosto por debaixo do cabelo comprido.
Debaixo dos três guarda-sóis abertos à noite e da marca Derza Cross está sentado um agente.
Uma senhora de saia de veludo vermelho, camisola preta e cabelo preto é amparada pelo marido de casaco com a cor azul-cobalto, casaco que a desvia do bmcabrio que está a ultrapassar a rua estreitada por causa do olhar das obras que não têm fim.
Mesa da marca Derza Cross a imitar uma pipa de vinho. Dois pequenos pipos e uma pequena banca de madeira escura estão desocupados. A parede do lado direito está cheia de grafitos rabiscados a lápis como se uma casa de banho fosse e dissesse: eu/nós estivemos aqui e marcamos o nome e a data da conquista do território.
O agente que na esplanada lia, continua a ler. Tem na mesa um caderno preto. Pára para fumar um cigarro e vai imaginando o seguinte diálogo anónimo e assexuado em que tenta desviar-se do curso normal de tantos outros discursos que escreveu conscientemente:
— Tens ido ao curso?
— Fui-me inscrever mas ainda não comecei a ir às aulas.
— Eu vou amanhã a uma entrevista para saber como trabalhar em casa e ganhar muito dinheiro. Deve ter algo a ver com produtos para o lar.
— …
— Mas dizem que tenho um corpo bom. Faço ginástica todos os dias com especial ênfase nos músculos das pernas. Gosto de contrair os músculos.
— Nota-se um corpo bonito em ti.
— Nota-se que impressionas ao falar… Dizes coisas com tino.
— Vamos descer?
O agente entre baforadas de tabaco rubio imagina este discurso pensando em como seria bom que após este momento de escrita, alguma mulher o viesse conquistar e o tirasse da leitura monótona da noite da esplanada de todos os dias, como se por magia as palavras fizessem acontecer.
A casa de banho está aberta, os ladrilhos da porta são de vidro fumado mas a imaginação permite ver para lá do vidro. Há alturas em que tal como a casa-de-banho é indiferenciadamente unissexo, o agente quase que nem se importava de lhe aparecer à frente um ser unissexo, oh miséria!, um ser de quem receber e a quem dar também, quanto mais não fosse, algum carinho, mesmo uma passa nessa grande broca social inacessível aos solitários, quase todos eles prisioneiros da liberdade.
O agente pensa nas mães do mundo, sussurra e a caneta tenta acompanhar: A avó tem cabelo púrpura, uma camisa às riscas; a mãe cabelo preto, camisola de alças pretas; a neta um gancho cinzento que prende o cabelo louro caindo sobre a bombazine coçada do casaco, coçada mas com alto estilo, a beleza castanha intacta ainda.
O agente diz que essa neta é juvenil, diz que que a avó tira a fotografia à sua descendência sentada nas cadeiras vermelhas com publicidade Super Bock, ou melhor, não consegue tirar essa foto por causa das artroses e, perante a amabilidade e apurado sentido de cumprimento do dever profissional do empregado que se oferece para tirar a foto, a mãe agita-se e sugere lascivamente que talvez o Octávio ou quem sabe o próprio agente, que assim veria o seu desejo acontecer após o desejar, ou mesmo Claudio, possa tirar essa foto para que as três mulheres dessa família imaginária, pois não saiu do papel escrito pelos agentes, possam mais tarde recordar esta pequena saída após o jantar de aniversário da pequena petiz que talvez se pudesse chamar de Graça.
O Jaime aborrece-se e deixa o xadrez para vir à porta fumar um cigarro.
Claudio diz que com o tempo a clarificação chegará mas pergunta qual será o preço que os agentes contribuintes irão pagar por essa clarificação.
O agente João aborrece-se por não lhe terem dado a moeda, mas até este agente é doutorado no kuduro da injecção quinzenal que o posto de saúde lhe aplica e por ser doutorado não risca o carro e diz que melhores dias virão. Acredita no futuro, acredita que lhe pagarão com dentes de ouro se houver clarificação, não se importa com o imposto a pagar pelas gerações futuras que não gerará por ser estéril ou geneticamente, eugenicamente modificado. Mas há vezes em que, quando a sua dor aperta, ameaça fechar com grades o parque de estacionamento.
Claudio olha para as obras que não têm fim. Bem que gostaria de contribuir para a sopa do João mas não tem moedas que cheguem. Está ele a contá-las e a amiga da Graça que voltou dirige-se a Octávio. Claudio levanta o olhar. A amiga pergunta se quer beber alguma coisa. Octávio pede um café com cheirinho. Claudio surpreendido, sopesa as moedas. Deve pensar: é tudo o que tenho. Estou indeciso entre comprar a dose de ganza e ir para casa ou pedir um café e ficar mais um pouco aqui, se ao menos a gaja se dirigisse a mim e não a este estafermo bonito aqui ao lado…
João pede a moeda para a sopa.
Jaime volta ao xadrez e prepara-se para a grande jogada.
O agente literário que lê e descreve escrevendo imagina o moderno hashishin: Veste sapatilhas baratas, provavelmente as primeiras que lhe chamaram a atenção na feira, veste calças de ganga, T-Shirt contrafeita em três cores, tem um relógio com pulseira normalíssima de cabedal a pedir substituição, usa uma barba de cinco dias, cabelo de seis meses e dentes cariados devido a tabaco e chocolates, gosta das chalaças do Herman só para enganar e, às vezes, regista que o Tó Shiba é primo do Zé Cabra, não serve ninguém a não ser ele próprio mas é só para enganar pois está preso a um local pela autoridade mental que diz que o THC é agora na percentagem dos trinta porcento e isso conduz à esquizofrenia e vai daí como confessou, ou veio a lume, que fumava hashish, pensa que é por isso que leva a respectiva injecção quinzenal, uma espécie de apresentação periódica. Ás vezes também ele gosta de mamar o subsídio justamente atribuído mas a namorada fode-lhe a cabeça ao que ele responde que nem todos podem ser funcionários públicos e quem se lixa é o mexilhão que trabalha no privado porque tem menos direitos e é sempre precário, e apesar de o Estado ser muitas vezes mau pagador ou pagar mal. Ponto final pára agráfo.
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Claudio Mur
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