quinta-feira, 9 de junho de 2022

Estórias da carochinha e do joão ratão

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«Amo-te Susa, continuo a amar-te», diz o homem, subitamente entristecido pela longínqua lembrança. Di-lo aos retratos de jornal que cola minuciosamente em madeira contraplacada, arranjada pelo fornecedor oficial de mobiliário da prisão que também arranja cigarros de contrabando. 

Na prisão tudo é possível arranjar, o colarinho branco está ao corrente das movimentações subterrâneas mas distingue-se por ignorar, ser permissivo, diz que não quer saber. O homem faz estas colagens tanto de estrelas vip como porno, adiciona-lhe pedaços de frases recortadas e agora recompostas com novos significados, aqui ao longo dos dias ele vê no futuro a tinta, o sangue, o fluido sexual, o cheiro que o liga ao passado, a cada estrela de cujo rosto já não se lembra. 

Este homem que agora se lembra do nome oculto dela, vive? À flor da pele o suor invade as faces coradas de álcool de um não-humano, a barba rude respira amor?, o álcool gratifica-o, degenera-o com a ilusão de amor e saúde eterna, não-humano sem fim, vivo para sempre, depois da morte recordando tudo, faz hoje anos que… mas falo de qual mulher? Ora, de todas e de nenhuma, de todas que comigo nos sangrámos. As mulheres que vivem na musa que me inspira os dias no catre.

O que mais ofende o homem é não ter conseguido explicar-se, ninguém o quis ouvir ou perderam o interesse quando o homem sentiu, quando chamado à pedra, um aperto na garganta e da sua voz nem um pio, nem um grunhido, nada, som nenhum, bloqueio total, a frustração recalcada. O homem quer ainda hoje mas não consegue, já é tarde. As palavras amontoam-se mas a boca permanece fechada. De tanto pensar, o homem esquece-se de tentar falar, seria tão bom poder falar silenciosamente e as pessoas ouvirem bem, por telepatia, mesmo as inflexões de timbre, o desespero de ela se ter ido embora e ele ter na altura achado muito adulta a maneira como lidou com a situação, afinal ainda não lhe haviam dito: manda o trabalho para o caralho porque estás a ficar parecido com um grunho doente. 

Depois uma luz surgiu e ele saltou para o escuro, saltou, desejou morrer mas não morreu, sorte ou azar, isso depende da perspectiva. 

O dia chegou em que lhe disseram os erros que cometera, ele sabia-os mas não lhes entendia o significado, e de tanto bater com a cabeça na parede arrependeu-se: afinal... devia ter dito, devia ter feito qualquer coisa para ela ficar, ela esperou uns minutos mas as palavras não vieram, não surgiu a acção, apenas o silêncio nos lábios tremendo, «tão infantil sou, porque desisti? porque me faltou a voz, porque não gostava dela de verdade?, porque a transformei num meme?, agora envelheci.» 

Ela foi-se porque perdeu nele as esperanças, ele nunca cresceria saudavelmente, «este homem não é normal!» parecia ela dizer « não quer uma mulher, uma família, uma casa, um trabalho, férias e viagens pagas... só quer tinta, telas e ganza...», ele seria para sempre uma criança velha, tinha disso a consciência, o único fruto visível, além dos bonecos e das palavras que nunca iam ao fundo do poema, era a impotência galopando dentro dele porque a verdade era dura: ele não tinha ser, não era real, tinha-se escrito dentro de uma disquete e a loucura agora dentro dele julgando o fantasma, dizendo que o que mal escreveu foi a peça de teatro que viveu, asneira atrás de asneira, a frieza como resultado, a vontade inexistente, a culpa atirada ao espelho para que pudesse ver a vergonha com os próprios olhos, a cabeça a rodopiar, tonturas voando, uma buzina soa e ele escreve as últimas palavras: 

«Decidi que estou numa guerra não-declarada com o mundo, atingi o ponto de fuga após o anel púrpura do colapso, aquí o caminho bifurca-se: sair, evitar este mundo e procurar um melhor; ou tentar integrar-me e reconstruir ligações, permitir que as mazelas antigas se curem, criar novos entendimentos. Aqui neste ponto do caminho existe um símbolo pintado por mim numa tabuleta e que diz o texto, o destino há muito escrito nas estrelas de lama: fui saneado, ajudei eu próprio com a autocrítca, não é agora mais possível, o mundo é um absoluto vazio, o mundo é uma máscara, eu sou um reflexo desse mundo, sou um perdido, nunca morrerei, andarei por aqui em espírito pairando como um abutre, admirando a sombra das minhas asas em cima dos telhados e pagando este orgulho, este pau de bandeira, obras de caridade e estórias da carochinha e do joão ratão em que me repito mas de vez em quando acrescento um pormenor.» 

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Claudio Mur

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