quarta-feira, 22 de junho de 2022

Que título?

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Supõe que vais a passear na rua e uma mulher atraente atravessa a rua vindo em tua direcção. Pára e olha para ti a três ou quatro metros de distância.

— Se fores um fotógrafo… sentir-te-ás atraído a tirar uma fotografia. Não verás tu que o acto de encaixar uma realidade dentro de uma imagem é perder tempo e não observar ao vivo essa mesma realidade?

— Se fores um pintor… observarás essa realidade em todos os seus aspectos, as emoções que a sua face revela, o modo como meneia o corpo. Sentir-te-ás atraído a fixar uma dessas sensações em tela mas conseguirás tu realmente pintar essa emoção que tão bem captaste em todos os seus pormenores?

— Se fores um escultor… tentarás fazer um modelo dessa realidade mas conseguirás tu transmitir a cor da pele, o vestido ou o sapato que ela usa?

— Se trabalhares na área dos audiovisuais ou teatro… tentarás talvez representar toda a sequência recorrendo a actores que poderão ser ou não profissionais. Conseguirás tu representar essa sequência na perfeição quando perfeição significa a representação da realidade em todos os seus pormenores como a emoção espontânea que varia de situação em situação e de pessoa para pessoa, de actor para actor?

Não vês que a representação significa uma mentira, a falsa, porque imperfeita, representação da realidade?

Por isso uma das mais importantes ferramentas deve ser a imaginação ou a construção de uma realidade, que não vimos na realidade mas que talvez pre-vimos.

— Se fores um poeta… sentir-te-ás tentado a escrever um poema sobre essa realidade, mas não seria mais interessante e real aproximares-te dessa realidade e dizer-lhes o poema espontâneo que desejaste em vez de o passares ao papel? A isso chamar-se-ia tentar fazer com que acontecesse.


Que título?

Ele vê a imagem.

Ela tem uma almofada por cima da cabeça.

Ela não vê a imagem.

Ele não sabe o que pensar.

Que pensar? O que é isto, isto que parece um paraíso perdendo-se, será um sonho sonhado durante o sono?, será uma paisagem com figuras reais e da qual foi encenada esta imagem e, então, fotografada e filtrada em pós-produção de forma a ser possível dar a ilusão de a beleza se manter ao longo dos tempos, para-sempre?, ou será isto que vejo, apenas, uma aberração cromática numa foto analógica, sem flash, pré-datando, anunciando o caos onde a realidade arderá, velhice entre terra musgo páginas de livros relidos? Eu não sei identificar a imagem, não sei com precisão o que é isto e, por isso, digo:

— Cancer, signo de ar maligno, amigo da hidra de nove cabeças, caranguejo iluminando nove cabeças humanas, uma por cada eu, nove vidas pestilentas, queimadas por fim e nada semelhantes às nove que os falantes nativos do inglês atribuem aos gatos, os gatos estão ausentes da imagem, na imagem está apenas um caranguejo, signo rebelde, está também uma serpente insidiando-se venenosa por entre as almofadas do sonho, ela dorme, a última cabeça, a eterna, arde na lareira, o fumo alumia a aparição, o herói, mordido pelo caranguejo, venera a imagem, o lume fornece-lhe o mito cristão da virgem e do menino, imagina o menino como seu descendente, ele — nascido do cruzamento de um zangão com uma borboleta nascida dentro de um ovo de picapau azul, ovo chocado por um sapo. Tudo isto é sonho, nada disto está na imagem… a imagem cheira a desespero, a megalomania, recorda-me alguém que se dá à curiosidade… há tanto tempo longe da urbe, dizem. Estou eu a desejar ir-me abaixo para sofrer ou sou eu o maior filantropo no planeta?

Mas ela, que não vê a imagem mas conhece em primeira mão as minhas palavras, interrompe a minha cadência mental, levanta-se da cama pintada e parte o vidro da moldura, sai de dentro do quadro, salta para o chão e põe-se a meu lado a olhar e pergunta se essa que pintei de amarelo cadáver ocre — ela mesmo que, agora a meu lado, está a olhar comigo o recorte na superfície do quadro — é alguém sublime, está curiosa, quer saber quem é, o que faz e porque estava aqui com a cabeça debaixo da almofada, é alguma conhecida, amiga ao menos, encontraste alguém para além de mim? Não respondo.

Ela insiste: — É alguém que eu conheça? 

Fujo à questão, pintei de tal forma que ela não se reconhece nos silvos de cor, eu ignoro-a por momentos para ir buscar tabaco ao saco e enrolar um cigarro. Consigo tempo para me perguntar porque se decidiu ela a agora aparecer, a entrar sozinha neste café, a agora ganhar vida e sair do quadro e vir, vir agora fazer perguntas. «Será para fazer de mim, ainda e talvez, um destino?» Mas ela, como se ouvisse o meu pensamento, ela desiste, talvez porque o nosso primeiro olhar cruzado após tanto tempo não lhe foi agradável, eu parei para pensar, e agora ela não espera, não me dá tempo de aceitar, de reconhecer a alucinação. Volta para onde sempre esteve, volta para dentro do quadro, ouço-a cismar baixinho: «eu, esta tua personagem não quer ser reconhecida!»

Agora, estou só. Estou num murmúrio semelhante ao experimentado numa noite, ao fim do jantar, no café, meio-surdo de um ouvido não consegui ouvir o relato de uma vida, hoje confortável e segura. Nessa noite, quando cheguei a casa liguei o rádio, descalcei as botas e deitei-me ao comprido na cama, peguei no livro de cabeceira, abri-o no marcador para continuar a leitura de «Uma conjura de saltibancos» e reparei, mais à frente, nesta frase «— Resk, meu irmão, estou muito contente por te ver! Andas então a passear?». O meu murmúrio teve um arrepio e pensou: «Noutros tempos veria uma sincronicidade na leitura destas, agora que a vi e não a reconheci, olhei e desviei o olhar e depois fiz-me de parolo que talvez arranje quem dispense umas ganzas se o turista aleatório quiser, só para com orgulho lhe dar a entender, lhe reafirmar por acções: este sou eu vinte anos depois... e depois de ti... o abismo... este encontro de irmãos desavindos... agora reconheço a falácia: ah. só um homem de palha poderia associar uma passagem literária com um encontro entre duas pessoas que nunca foram irmãos e apenas tiveram a ambição de o seu amor nisso os transformar, um encontro que só quase aconteceu, a nossa história foi intensa mas curta, nunca fomos família!» 

Agora, nesta noite, rascunho a lápis a passagem para fixar a memória do evento e deixo uma nota na última página em branco do livro do Cossery:

«Naif. A percepção externa. Non plus. Antes era naif. Místico agora? Rai'sme partam as caras de morango, parece uma evolução mas as palavras não são minhas. A eles parece uma evolução, lembro-me de ler a parangona gorda escrita por quem só agora descobriu esta realidade tão alheia, ah! aquela que nem tu ainda sonhaste: lareira, fogo, algo a acontecer e transformando o quarto onde ela dorme num lugar encantado.»

Agora, murmuro dentro da minha cabeça e, enquanto enrolo mais um cigarro, imagino que algum dia terei de responder a perguntas de pessoas, possivelmente, com interesse genuíno em saber quem é esta personagem de salão de dança ritual. Não me faço rogado, esquematizo, intersecciono, dou cor e apresento já o título, escrevo-o por fim. todo ele enigma. Imagino, é óbvio, igualmente algumas das possíveis opiniões e as palavras, que ouço, são:

— Quarto, inverno, passa-se no Inverno?

— Eu próprio também não sei, murmuro. 

Vou aprendendo com o desenrolar da história, eu gosto de contar histórias e aprender, reactualizar uma vivência. Continuo a imaginar palavras: 

— Aquela ali é uma virgem negra?

Dá-se o clique. Começo a debitar informação, surrealismo, associação de palavras, resmas de papel:

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Claudio Mur

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