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«Penso ter filhos aquela que interrogas como sendo uma negra virgem. Ela tem o cabelo pintado de violeta porque lembro-me de a ver fazendo compras num supermercado ou, se calhar não… Estava, mazé, ao balcão numa pastelaria aberta ainda noite perto da madrugada e eu estava lá, estava lá a ler o jornal desportivo e a comer broa de milho, então, ela pediu para ensacar quatro pães secos… à minha frente tão verídica… parecia uma cigana, o cabelo com uma cor quase natural, quase real… sim, falava natural, quase banalmente, falava de coisas reais e importantes, em contraste eu repetira, minutos antes enquanto caminhava pela rua, as palavras do néon de uma loja de chupetas para bebé… saiu-me desse modo nessa noite, após revisitar os locais descritos no livro, alto discurso que fiz na garganta do inferno, nada mais que o refeitório do Centro de reEducação Alimentar, o CReEA — um local desprezível… mas voltando à história, ela saiu da pastelaria e deixou-me a pensar: era ela não era ela era não era? Era tal e qual este quadro. Foi uma aparição do inconsciente materializado? Foi uma realidade consensual acontecendo por rotina? Foi a electricidade passando por radiotransmissores duplex e portáteis passando a mensagem de que o herói caído em desgraça se passeia pela cidade uma última vez? Quão estranha parece a nossa interpretação acerca dessa plausível rotina, eu preocupo-me com a duração da rotina, se acontece todos os dias, por hábito ou por amor conjugal ou se por acausal acontecimento. Que mulher é esta que tem o cabelo roxo?»
«A imagem do café não está na pintura mas selecciono-a por me parecer a vivência de uma mulher comprando pão para o pequeno-almoço do marido que tem de ir trabalhar, das várias hipóteses nem sequer pestanejo, disseram-me que estava casada e eu acreditei piamente, decidi-me a arranjar trabalho, é tão canónico proceder assim como passar quinze minutos na Lost Underground folheando vinis, registar várias hipóteses e não ficar satisfeito até se olhar em frente para a prateleira dos cedês e tictactic, já está, a imagem seleccionada a adquirir neste fim de Sábado consumista é o CD da Jarboe: Mahakali. Boa compra. Ouvir miss J. cantar e compreender a sua poesia torna-me imune a todas as simones de boavista da metrópole.»
«Tempos atrás, não me preocupava em descrever a realidade com objectividade. Nesse tempo, era livre e vivia. Recortava imagens, guardava-as no arquivo e facilmente as esquecias, não ficavam na memória, esta era eternamente reciclada. Mas isso era quando vivia e vivia bem sim xeñorita. Na altura, não tinha sequer a noção de que a minha memória é volátil e tudo esquece. Na altura, a imaginação era uma arma. Não tinha noção das palavras e suas consequências…»
Mas aqui, a unidade central de processamento recebe um pedido urgente vindo directamente da memória cache, ou seja, um baton rosa escreve-se na parede do quadro, pede para que se escreva a informação crucial e que se deixe de barbear os iaques.
Eu registo o pedido, ou seja, olho o grafito sendo escrito e aproveito para dar corpo ao texto, mudar de página:
«Hoje, a juventude já lá vai. Além disso, toda a gente está com medo de a água subir três metros (ou mais, não sei bem as perspectivas oficiais anunciadas para o fim do mundo) na costa da cidade vermelha mas ao mesmo tempo… hoje somos todos muito racionais, científicos ou, então, acreditamos na pseudo-ciência dos padrecos e das videntes: vê lá tem cuidado onde cortas o teu cabelo, onde arranjas as unhas… porque se acreditas em tudo isso, amuletos de adn, talismanes de sangue, algo pode mesmo acontecer, vá lá, tem cuidado com o que desejas e, se o desejas, não o passes ao papel pois pode muito bem acontecer, tudo muito benzinho ou tudo muito mauzão com provas e tudo capixe?, ou kaput?, make yr own choice desde que sejas livre. É preciso que te libertes, é preciso que te destruas antes que sejam os outros, os que sempre te enganaram, a fazê-lo, assim manterás uma certa dignidade e verás que poucas vezes estiveste errado («fazes-me rir, pareces o presidente defunto!»), verás que passaste anos perdido e martirizando-te com sentimentos de culpa, canibalizando ao calha, projectando nos outros as neuroses vindas como pulsão um pouco histérica do teu passado socioconjugal, e verás que estás como novo, com metade da idade, a vida poderá ainda sorrir-te desde que nisso acredites. Acredita irmão: reformares-te será o teu melhor projecto de vida, viver com um mínimo e dedicares-te a manusear a cor, uma acção bem diferente da manipulação dos corações. Por isso faz por isso, tu terás um futuro e não precisas de estar morto, olha… para dar o exemplo: hoje fui comprar uma bicicleta usada por vinte euros, tão barata que nem tem ar nos pneus, gastei mais quinze na bomba de encher, custou dar o pilim mas agora dispenso transporte público e vejo cor por todo o lado, acrescento a minha cor, a minha humanidade.»
E de um momento para o outro estou a dialogar com o outro que há na minha mente:
«Devia ser mais humano. Eu que te ouço, meu duplo que surges por entre a névoa púrpura do cigarro enrolado, eu sei… devia viver a realidade, estou farto de processar informação, sabes que é semelhante a psicanalisar? Nascer outra vez era o que eu queria, pouco me lembro da infância, um chinelo, um triciclo, uma caganeira devido a uvas da casta moscatel, comidas quentes, uma fisga e um arco com flecha que o meu avó fez a partir de um ramo de figueira, umas lágrimas de asfixia causadas pela aguardente num copo de vidro colocado na pia, parecia água e eu tinha sede, o fogo do estômago subiu-me ao olhos, eu pouco me lembro da teia de aranha e da lâmpada, vê que não se sabe se é dia ou noite ou se a luz acesa está, não existem sombras, não são, por isso, anjos com sombra, o que significa não ter vendido a alma, são anjos bons numa realidade consensual onde pertenço por afinidade, quando vivo talvez esteja fora quando gravo estou lúcido, eu pouco me lembro, pouco sei, poucos rostos reconheço dos que permanecem ainda à minha volta, eu sei. Ser mais racional seria representar as emoções, existe uma dissociação entre o que penso e as palavras que a minha boca emite. Outros apercebem-se a tempo dos erros de interpretação de linguagem e explicam-no com precisão. Eu, sempre que o meu tom de voz ou as palavras se enganam e transmitem um conteúdo ambíguo, faço como uma avestruz que não sabe onde esconder a cabeça. A minha cabeça é um desastre e as poucas de reacções que surgem já não são de interesse ou curiosidade. É o vazio, as pessoas, as mulheres afastam-se, afastaram-se e, a partir de uma certa altura, a minha rede emocional começou a só apanhar lá de vez em quando uma brubreta marada, na casa dos trinta, ou as vou-ser-estrela-pop, ainda nos vinte e tal anitos, plastik ou canekone, enfim dar no caneco nunca foi projecto de vida, adiante. Se divergimos no conteúdo, no grito, na vontade, na realidade representada, quando dizes less is more eu concordo mas replico que, às vezes, more is good e, se tu consegues contar vinte histórias por quadro, este torna rico aquilo que, anteontem, parecia naif, quando um naif parecia um gajo ingénuo, banal. Agora, a imagem, que pinto, desperta a curiosidade de quem percepciona, quando eu próprio a apresento, quando me transformo em guia. Desperta curiosidade porque é pintura african naif. Aliás: naif bruta fauve selvagem expressão: tudo palavras que me encantam. Prefiro que me chamem africano que branco capitalista.»
Não consigo definir um título. Preocupo-me com um título. Tenho já um título. Registo-o codificado numa imagem anterior e procuro opinião. Pergunto-me também pela audiência enquanto vivo.
«Se bebermos até ao tutano na solidão… tenho saudades, algumas, poucas. O mundo vai acabar daqui a instantes e, por isso mesmo, pergunto se o bar tem sofás de veludo colorido. Fiz preparativos para sessões de sexo com mui purissíssimas elinhas mas estas raramente apareceram. Enviei cartas, dizendo: apaixonei-me e tive relações; ou então, mais lúcido passei a dizer: ultrapassei-te e estou-te a falar disso porque quero manter uma ligação. Falo também de conhecer o lado negro da realidade — perdi todas estas relações, ligações — chama-lhe o nome que quiseres, tanto as canibalizei que elas agora mantêm uma distância de segurança, como se fossem juízas julgando causa própria — a minha realidade ontológica, como se hoje tivesse nascido passando do inferno para o céu, hoje mais lúcido. Hoje Lúcifer é um anjo caído por adorar o seu orgulho de possuir a luz. Terá ele sombra? »
Ouço falar em aparição. Foi referida uma ou duas vezes no passado. Parece que essa aparição não está de modo algum relacionada com a fogueira ou, pelo menos, não precisa da fogueira para aparecer. Escrevo:
— Sua nabiça! Não passas de ilusão… se não precisasse da fogueira poria lá um pau de incenso!
Mas ela continua a bater na mesma tecla, atira-me com o caranguejo cheio de água, senta-se na cama e diz. Diz que a aparição é real, que não precisa de adereços:
— Quem é a rapariga que dorme? Não queres dizer.
Não quero dizer por orgulho, mas olha que ela sabe quem ela é, ela sabe que é ela mesma, a dita e mui ditosíssima ela, mas ela não se reconhece ou pede simplesmente que eu diga por palavras, pede que eu admita que a amo em vez de o provar transformando-a num reles objecto pintado.
— Que significam as letras escritas a baton? Não queres dizer.
Não quero dizer mas olha que ela, só ela, a mui dita e ditosissima sabe o que querem dizer as palavras que escreveu, mas ela, sabes?, ela não quer dizer, ela não as quer mais dizer. Eu cá por mim minto e falo para ela como se ela não fosse ela pois ela também não se reconhece na imagem que dela pintei: «Eu também não sei ou não as compreendo ou não as quero compreender ou não compreendi porque foram escritas por ela.» E continuo a mentir talvez talvez porque existe aquilo que, à falta de melhor explicação, se define por intuição, esse monstro. As palavras aconteceram, foram escritas no espelho.» Cabelo escuro. Um metro e sessenta. Com quem, às vezes poucas ou nenhumas vezes agora, faço amor usando a imaginação porque está longe a sua realidade consensual.
— Muito bem, caro amigo, muito bem.
— Obrigadinho hã.
Continuo a escrever:
«A flauta que encanta as serpentes é uma imagem que recordo, é um encantamento partilhado. Sentimos que vivemos encantados. Na imagem, ele adora a coragem de alguém feminino tomando conta de um menino pequenino que inconsciente a amou e por quem ela tem carinho. Ele quer sentir-se protegido. Quem é? É alguém que eu possa conhecer? Ah, arder a realidade em fotografia é sonhar o nosso nascimento. Deve ser por isso que adoro o fogo, hoje olho para esta lareira que não pode ser acesa porque a chaminé está entupida. Olho para a lareira apagada e lembro-me dessa da aldeia. Penso em quando nasci e adoro a imagem. Como se a queimasse.»
Então, observo que ela esconde a cara para não ver ou não ser vista pela minha percepção da sua realidade e a minha tentativa de a representar no momento. Como se o mundo e suas atitudes fossem encenadas e nós, que vemos a representação dessa realidade, fôssemos o público algo embasbacado sem saber se existe um destino ou se, ao inverso, nos agarrámos a uma noção de destino como existência para todo e qualquer acto quasi-contingente como borratar com tinta as calças que ela me comprou com muito amor. O melhor esquece-se. Não se revive. Mas a saudade, às vezes, não lembra só os maus bocados que nos martirizam e chegam mesmo a ser insuportáveis. A saudade também, às vezes, vai lá ao fundo do poço reviver um néctar saboroso do amor quasi-conjugal. Mas a saudade que se lixe, pois o momento que antecede o futuro é sempre a realidade mais consensual, embora essa realidade consensual possa ter muitos talvez talvez acerca de ti ou de mim. E quem somos nós? Às vezes, é como descobrir ouvindo. E para isso precisamos de uma realidade consensual onde possamos estar inseridos, ou seja, precisamos de outros, e, se outros não existem quando precisamos deles, projectamos esses outros em duplos de nós, alguém que nos substitua. «Andy Wharhol fez isso, sabias? Mandou um duplo conferenciar em vez dele e, pelo menos uma vez, não deram por nada.»
«Ah se eu fosse mais humano viveria a realidade. Viveria uma boa realidade, não teria medo de cair numa má realidade, seria humano cair e ter forças para me levantar desse chão húmido, lamacento, materialista em decomposição e quase acreditar que esse medo possa ser criador. Deveria viver a realidade sem ter medo de a viver, ou melhor, sem ter medo de sofrer com a realidade, acto de viver. No inferno é difícil pensar. Fiz a confirmação na catedral sabendo já que não acreditava na virgem maria, essa realidade consensual. Fotografei a cruz celta. Vejo a representação de Hades.»
A lareira está apagada mas é como se estivesse acesa e olhasse para ela, para o fogo, para as cores sucedendo-se fluidamente, deslocando-se. Não ponho a mão no fogo porque não quero. Quero desenhar a cores no momento em que a realidade for já razoavelmente conhecida, se houver pelo menos um esboço mental. Criar no acto de viver e viver no acto de criar. Tudo, se fosse menos moral e mais humano, se passasse das palavras à acção por palavras mas não verborreiando muito porque senão, claro e lógico é, a dose a injectar para recompensar, depois do delírio da descompensação, pode ser aumentada pela autoridade mental. Ter de começar do zero após um internamento é a pior tortura. Imaginar viver e viver imaginando, descrevendo, analisando por intermédio da vontade quasi-auto-hipnótica, verificar o que a colisão dos hadrões ainda não conseguiu, eles avariaram-se quando tentavam explicar a plausível existência de um deus infinitamente duplicado, com anjos e agentes em cada esquina, a mais verdetosa que se possa encontrar nos arrabaldes e ilhéus na cidade vermelha, um deus em quem se possa acreditar e mais importante do que isso confiar e assim pelo método de dúvida descobrir a verdade que parece não ser possível ser dita, intuir pelo menos a verdade. Pois só posso intuir a tua realidade, embora tu escondas a cara. Viver a realidade e ao mesmo tempo gravá-la na imaginação pela arte da memória:
Crab, beetle, scorpio, spider. És um mistério para mim.
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Claudio Mur
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