6. O local de nascença
a)
Quando se é pequeno vai-se à escola.
Quando se é pequeno brinca-se com os colegas.
Quando se é pequeno vemos televisão e vamos para a cama aterrorizados com a escuridão de um corredor lembrando-nos das gigantes formigas vermelhas do filme «Them».
Quando se é pequeno vamos ao jardim zoológico ver os leões, as aves e tiramos fotografias com olhar ambíguo de sofrimento e força, o cabelo desgarrado e calções de bombazine.
b)
Foi há oito anos a primeira vez. Uma eternidade. Estava num elevador parado no segundo piso abaixo da terra de uma torre verde perto do rio com dez andares acima do solo e mais quatro subterrâneos. Os toques de campainha que efectuei das seis da tarde em diante foram estranhas e não me recordo bem delas, não me recordo da dicção que empreguei saindo de um corpo sem gravata. Não vendi nada. O ar, o sorriso daquele casal de meia-idade, holandeses loiros, deixou-me a pensar: estou eu com um sorriso tripante? Não compraram nada. Recordo às oito entrar na carrinha e alguém, que sabia do esquema, vira-se para o banco de trás e comenta alguma coisa em código e eu respondo gritando porque não ouvia bem: correu tudo bem. Como que a dizer: não me bateu nada.
c)
Enquanto estudo matemática e, em especial, os diracs, acordo na manhã seguinte sonhando com um jacto de energia infinita projectando-se, através do eixo yy do sistema euclidiano na intercepção ou secção de corte de um plano irregular com as formas esféricas do traseiro feminino: chamam-lhe polução nocturna mas não passa do reflexo psicofisiológico da memória resgatada do disco duro com ficheiros sobre grafitis de pó que o Pinto desenhava na carteira da secundária, era lindo o diálogo com a Soraia, ela desenhava e dizia «a piça do pinto» e ele acrescentava duas meias luas e dizia «a cona da soraia», e levava um estalo ao som de um «estúpido!» Agora, depois do almoço, ouço vindo de uma k7 gravada com Tom Waits o som de um homem a dar de comer aos garnizés enquanto eu penso, penso, vou pensando em tudo e me crescem orelhas de burro ao som dos mantras fúnebres que terminam a k7 a dizer o «dust to dust dust to dust» transformando-se em «quero estudar quero estudar» durante pedaladas de bicicleta à tarde. Ah, como é linda a paisagem. Sinto-me leve e jovem. Meu pai bem me disse: queres as coisas, estuda, trabalha, luta, ganha as coisas. E eu que fodi as senhas de autocarro para fazer filtros, o que o meu pai me diz entra por uma orelha e sai pela outra, acelerada e fumada, mijada contró vento mas... ah que água linda. ela vai sair do barco e oferecer-me um peixe a troco de um euro, vou fotografá-lo para um quadro futuro.
— Tu já estás a pintá-la.
— No, I just took the photograph, sou inocente, não tires o t à pintura nem ao passatempo.
d)
A estrela polar, a constelação de Orion, a estrela imaginária Cassiber ou a constelação de Cassiopeia, a estrela Sirius e a companheira negra, quase invisível ao olho científico, Sirius B...
Qual será o segredo da ressuscitação?, the way to succeed and the way to suck eggs...
e)
Culparemos ou deveremos NÓS culpar a família, os nossos genes por sermos considerados esquizofrénicos?
O problema não será a família nem os genes individuais que se fundiram, o problema será mais o facto, talvez a necessidade, da célula se dividir, ficando para um lado as forças da consciência e para o outro as forças do sexo e género, gémeos monozigóticos então que não são necessariamente antagónicos e que dialogam entre si para todo o sempre; então, é natural que, algumas vezes, estas vozes interiores venham à superfície e se projectem nas vozes dos outros que partilham, por exemplo, o espaço informal de um autocarro público ou do local onde se toma o café e se compra o jornal diário.
f)
Houve alguém que «confessou» ser um bissexual que nunca teve uma experiência homossexual (?!), nem na sua mais fértil imaginação?, perguntamos nós.
g)
«Da próxima vez que eu sonhar isto quero lembrar-me que estou sonhando.»
«Estou sonhando ou não?»
Se sozinho não consegues sonhar, sonha com uma máquina de sonhos, fecha os olhos, não dormiste a noite passada, põe a função repetição aleatória na música do cedê para não saberes qual vem a seguir e onde acaba, o som nunca acaba, tira a camisa para sentir a frescura e nunca caias totalmente no sono.
Falas Visual C++ durante o sono?
Claudio Mur em «Manual de sobrevivência»
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