sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Livros, laranjas e copos de água

 Há dias no Asa de Mosca, o meu amigo Oliveira e um colega dele falavam de colecções inteiras de livros que são vendidas quase ao desbarato pelos herdeiros de alguém a alfarrábios, que pouco dão pelos livros e depois, alguns desses livros aparecem no mercado ao preço inatingível de um copo de água em Gaza.

Eu meti a colher e disse: -- O Krauss na VS custa 22 euros mas tem oitocentas páginas, já um livro da Barco Bêbado custa quase 20 e às vezes nem 100 páginas tem. Por muito que os autores e o conteúdo seja bom, quem é que pode? É como um Anti-Édipo ou um Stirner a 30 euros. Quem é que pode? Mas olha, comprei este Corso a quinze euros à pouco na Livraria Utopia há meia hora, estava a um preço aceitável.

Eu já não sei o que eles disseram mas eu continuei, agora num lamento que vem sendo aprimorado à medida que envelheço: -- É como os meus livros... quando morrer vai tudo para o contentor, os meus sobrinhos não lêem!

Responde o Oliveira de rajada: -- Olha!, faz um filho!

Eu surpreendido acordo do sonho onde vivo e a sorrir aparvalhado digo como o Marques Pentes do Portugalex «aqui chegados» apenas duas palavras: -- Olha, fazer um filho para ter quem leia os meus livros?!

Eu sei que foram mais de duas palavras o que disse mas foram as únicas que verbalizei, fiquei a pensar em muitas razões: ter dinheiro para cuidar do filho, comida, vestuário, calçado, escola, tempos livres, dinheiro; encontrar a nossa cara-metade certa, etc. Não disse nada. O Oliveira acabou por se virar para o colega e dizer: -- Olha, o meu filho já vai comigo para as feiras e até gostou de andar lá no meio dos livros.

Eu fico contente por ele mas também observo que a ex-mulher lhe está a foder a cabeça. Quem tem razão não faço ideia, mas fico contente por ele ter um filho que gosta do pai. Eu só muito tarde aprendi a gostar do meu, e quando foi a altura de ter filhos pensei: -- Vou fazer um filho que não vai gostar de mim?, olha os filhos do Toninho que não querem saber dele...

Entretanto, os dias vão passando e hoje, ao almoço, descobri que há uma conspiração na minha cozinha perpretada pela minha mãe e pelo meu pai, uma conspiração para eu comer fruta, hoje uma laranja, ontem uma banana ou uma ameixa ou uma pera Conferência, hoje disse-me minha mãe: 

-- A laranja faz bem ao teu catarro...

O meu pai acrescentou: -- Sim, tem Vitamina C...

Eu ri-me, pensei cinco laranjas custam 3 euros, agora vou ser obrigado a comer uma laranja, tou tramado, virei-me para eles e disse: -- Tenho 50 anos mas para vocês hei-de ser sempre bebé, agora até me enganam, só falta voltar à fala do antigamente: olha o peixinho, olha o aviãozinho...

O meu pai sorri, não diz nada e descasca uma maçã Starking. A minha mãe que ainda não terminou o conduto, mexe com o garfo no prato, olha sem compreender a guerra na tv, e pensativa acaba a dizer:

-- Eu lembro-me de uma vez teres dito, olha mãe agora tenho uma namorada logo vou estar com ela...

-- Quem, que namorada era essa, como se chamava?

-- Lembras-te da Sheila?

-- Ah, a Sheila... ela não chegou a ser minha namorada, eu pedi-lhe namoro mas ela não aceitou, foi no quinto ou sexto ano, os recreios eram separados, rapazes para um lado e raparigas para o outro, com uma cancela a dvidir os recreios, nós encontramo-nos na cancela, eu fiz o pedido, ela sorriu, disse que ia pensar, mas depois disse-me que não...

-- Olha, disse o meu pai, devias ter pedido namoro à Maria João, ela gostava de ti, os avós dela também...

-- E eu gostava dela, mas aí o problema era que quem gostava de mim era a colega de carteira da Maria João, era uma espécie de telenovela Morangos...

O meu pai ri-se. É bom ver o meu pai rir-se e por isso eu continuo na palhaçada:

-- É eheheh, era eu e o António na carteira da frente, o António era um míudo gordinho de S. Gemil para onde eu fui uma vez à tarde jogar computador e não fui mais vezes porque eu não tinha jeito para jogar, lembras-te pai de ouvir falar dos Spectrum?, os jogos entravam por cassete, ainda não havia sequer disquetes, era preciso ter paciência de chinês, porque é que pensas que os maiores programadores do mundo são quase todos asiáticos, indianos, paquistaneses, chineses e quem mais for...?, é porque têm paciência de chinês para aturar a máquina. O António era um paz de alma, ninguém se metia com ele, e na carteira atrás da nossa estava a Maria João e a colega, já nem sei o nome dela, e ela metia-se comigo e eu dizia está qu'eta!, ora ia lá pedir namoro à Maria João ao lado dela...

-- Ela gostava de ti...

-- Olha então gostavam as duas de mim... é!, daqui a pouco vão dizer que eu era um playboy... tá bem... nunca gostei de telenovelas.

Para terminar o almoço, comi uma laranja do Allgharb.



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