Brandir o pincel
Magia é a faculdade de causar mudança ou de quebrar a inércia de um sistema pondo-o a girar por métodos não naturais. O primeiro acto mágico é o desejo. Se desejamos agimos, tentamos alcançar o objecto do desejo, torná-lo nosso, comê-lo mesmo.
No entanto, devemos ter cuidado com o que desejamos: a desmesura, o excesso ou a impossibilidade de atingir o objecto do desejo pode levar à obsessão e à loucura. E, em último caso, à culpa e ao crime, porque «o que está em cima é como o que está em baixo» e usar a magia para obter algo a nosso favor vai certamente desfavorecer alguém na nossa vizinhança.
Em certo sentido, eu construí a minha própria loucura. E a loucura foi o modo de fugir à realidade opressiva, foi o modo de me tornar anónimo, invisível, um bandido mental. E criar o meu mundo, a minha família. A minha família é, acima de tudo, a família sanguínea mas também as pessoas que estão à minha volta e com quem convivo no dia-a-dia. Mas esta família terrena não me é suficiente. Preciso de uma família-mito, uma que vou adoptando ao longo dos dias em que a vou lendo nos livros, esses pais de combate ao tédio, na mãe música que venero e nas crianças que gero, ou seja, nas telas que pinto.
Cada tela é um filho meu, a simulação de um momento, uma fotografia a fixar para a posterioridade que é sempre o momento em que alguém -- outro que não o pintor -- a vê. Esse outro vê a tela e pergunta-se «o que é isto?, o que quis o pintor exprimir?, que fantasma, que fumo é este?, que musa, que fada ou bruxa... que mulher representa esta figura?, eu conheço-a?, que mundo estranho mas fascinante...» E aí, eu explico, eu reconto, eu invento a história, dou substância à imagem, à minha filha.
E em certo sentido, a minha missão cumpriu-se cedo, a minha magia funcionou quando uma amiga de uma amiga entrou uma noite no meu quarto-atelier e ficou quase histérica na sua admiração do quadro que na parede estava a ser pintado: «Foste tu que fizeste?» O brilho e a alegria dos seus olhos valeram mais que todas as centenas de euros que o quadro pudesse valer. A minha magia cumpriu-se também como uma chapada naqueles que cépticos disseram «não parece ter sido feito por ti», uma chapada nos que julgam uma identidade pelo nó da gravata ou pelo buraco brinde de uma camisa, pelo sapato cambado ou pela cor do verniz ou do batom, pelo que ela parece numa selfie em vez de a julgarem pela eventual qualidade do seu trabalho. E cumpriu-se também de modo sublime naqueles que me disseram:
-- Ganda maluco tu, eu que não dava nada por ti, e tu agora mostras-me isto!?, eu dar-te-ei droga, aranjar-te-ei tudo o que precisares, vou pôr-te a render... vais ser um mito!
Estes são alguns dos momentos bons, o «em cima».
O intermédio foi eu, quando ainda finalista de um curso de engenharia, imaginar-me num futuro a subir a Rua Sá da Bandeira no Porto a caminho do autocarro para casa com uma tela de metro e meio acabadinha de comprar. Isto também se cumpriu.
O «em baixo» foi ter ficado louco, ter sido internado e ter perdido todas as amizades, toda a família de amigos e amigas com quem cresci e aprendi a criar. Todos eles e elas se sentiram e ainda se sentirão desconfortáveis com o modo como eu os des-caracterizo na minha pintura, no meu desenho, nas minhas palavras. É esta a culpa do mágico, a culpa do pintor, a razão porque ele se sente um bandido mental, um outsider mesmo aos outsiders, um bruto que brande o pincel.
ZMB
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