quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

O grande homem

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Soube que era um génio quando comecei a encontrar o romance nas livrarias; quando o retrato principiou a aparecer nos jornais: quando dei a primeira entrevista à televisão. Consciente da minha celebridade e do meu talento, pareceu-me injusto não sair para a rua de pé, em carro descoberto, cercado por guarda-costas de óculos ray-ban, a mostrar-me e a abençoar.

Decerto que ao passar, num cortejo lento com motociclistas à cabeça, os homens tirariam o chapéu a persignarem-se, vergados de respeito, decerto que algumas velhotas ajoelhariam a rezar. Convicto da minha fama e da admiração dos contemporâneos, resolvi, como era Agosto, oferecer à Praia das Maçãs a dávida da minha presença, seguro de aplausos, autógrafos, interjeições entusiasmadas e gritos de fãs à beira do desmaio.

Cheguei por alturas do almoço após horas e horas numa bicha de automóveis domingueiros obviamente repletos de leitores entusiastas, e parei no restaurante do Augusto onde uma multidão de súbditos se debruçava para o cherne pronta a aclamar-me no fervor das paixões ilimitadas. Ninguém pareceu dar pela minha entrada: nem um maxilar deixou de mastigar o bitoque, nem um nariz emergiu do galheteiro para me observar com pasmo, e quando eu, agastado com a incompreensível distracção das pessoas, tossi a chamá-las, a voz do Augusto veio lá do fundo do balcão, a apontar-me num brado que fez tilintar de susto os copos de Colares e sobressaltou a hibernação das lagostas mancando nos calhaus do aquário:

-- Olha o Antoninho! Dei tanto pontapé no cu daquele gajo!

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página 11

António Lobo Antunes em «Crónicas»

edição Publicações Dom Quixote

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Coil - Paint me as a dead soul

Paint me as a dead soul With a halo of black joy Medusa in a mirror Etched out in acid The flesh, the image, the reflection One who dwells in scarlet darkness Like animals in palaces Drawing blood The flesh, the image, the reflection Let's complete the illusion Paint me as you see me From memory or history In a fever or a frenzy Paint your lucid dreams and visions In a chamber of nightmares In a temple of locusts So violent, vile and vivid May the colours make you fearful Blind and hypnotizing In our subterranean heaven Paint my cunt with dragonflies My eyes as bright as diamonds My heart open like an ulcer Or a sacred crimson rose Bathed in blood Or drowning in my bed With the fragrance from the flowers In the gardens of the dead Paint ghostly foxes, cats and camels A red dog and a black dog Paint a putrid sunset In verdigris and violet Ochre, amber, mauve Four monks Carrying a goat Over the snows To nowhere And paint the shades That come with evening Peacock angels Dream of leaving Paint me as you see me Paint me as I see me Paint me as a dead soul

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Tuíte político

Eu falo pouco da minha infância e adolescência porque ela foi um pouco opressiva e desprovida de muita felicidade e teve muita alienação, não há coisas bonitas que façam um livro futuro. Assim fugi dos meus pais aos 18 indo estudar noutra cidade e um mundo novo se abriu, à custa dos meus pais que me pagaram a estadia, a renda e as propinas. O estudo correu mal mas terminei-o. Trabalhei e fui despedido, fiquei doente, lutei por ser alguém, pintei e vendi, tive amores incompletos e falhados, escrevi livros que poucos lêem porque são em edição de autor e eu pouca publicidade faço. Além disso, enterro-me sempre que abro a boca e o escrevo ou digo em público. Por tudo isto me reformei e a casa dos pais voltei porque não aufiro valores necessários para viver na minha própria casa.
Hoje sou obrigado a fazer compromissos com pessoas comuns que têm ideias com as quais não concordo e não é só no café. A minha atitude em casa é fazer chegar conhecimento à minha mãe que ouve mal e ao meu pai que tem ódio ao socialismo.
Ganhei uma batalha quando fiz que ele não vote no Chega, o neofacho do Ventura queimou-se quando chamou o Montenegro de prostituta política,  ele compreendeu finalmente. 
Esquerda 1 - Fascismo 0

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Tuíte O céu e a lei

Bem venturados os loucos
Porque deles é o reino do céu
Votam em quem lhes atira um osso
E não se importam de dormir com o cão 

domingo, 18 de fevereiro de 2024

E ergue entre sorrisos esse copo, e diz-me:

 O protocolo do rubor


Logo haverá tempo para a farsa

do «estudas ou trabalhas, costumas

vir aqui, como vai o teu irmão,

e o teu pai, e o teu cão, onde é que vives,

do que é que gostas, viste este filme

- olha, surpreendeu-me -», se preferes

comida chinesa ou italiana,

o whisky em copo raso, se és abstémia,

praticas ginástica rítmica, sessões espíritas,

se já estiveste em Londres ou em Paris.


Logo haverá tempo para o «meu amor, minha querida»,

tempo para o calor e para a ternura,

o doce recolhimento pós-coital,

o cigarro da tua marca favorita,

um copo de vinho ou café

com leite, confidências

sussurradas ao ouvido

na penumbra do quarto.


Logo haverá tempo para a indiferença,

a incúria, os gritos, as palavras

feias, a louça partida,

e para as lágrimas e consolos, encontros

e desencontros, mensagens de ódio

ou de rancor, se for isso o que a vida

nos exige e isto não se limitar

às cinza de uma noite que se esgota

aqui e agora, entre os fogos

fátuos de uma estúpida comédia programada

por ditame de um deus desmiolado.


Porque tu sabes e eu sei que nunca

há tempo. Por isso cala-te. E olha para mim.

E ergue entre sorrisos esse copo, e diz-me:

«Cala-te e fode-me».



Roger Wolfe

página 74 - 75

em ''Fazer o trabalho sujo''

tradução de Luís Pedroso

edição Língua Morta


Before the white men came [repost]



Instruments used by Raksha Mancham are: Arghul (Egyptian double bamboo flute), Balafon, bass drum, bells, blowpipes, Bu Cham Rol Mo (Tibetan cymbals), cattle bells, Chöd Tön dhar (Tibetan narrow drum), claves, congas, cymbals, Darbouka (Moroccoan and Tunisian hand drums), Djembe (Malian drum), Drilbu (Tibetan bell), drums, Dung Chen (Tibetan horn), Dung-dKar (Tibetan conch), flute, g-Ling-Bu (Tibetan double flute), gong, r-Gna (Tibetan drum), r-Gyaling (Tibetan shawn), Ingoma (Rwandese drum), r-Kang Ling (Tibetan horn), marimba, Mendjan (Cameroonese xylophone), metal, Nachung r-Kang-Dung (Tibetan thigh bone horn), panflutes, acoustic percussions, metal percussions, rattle, Riqq (Egyption tambourine), rototoms, Sallamiya (Egyptian reed flute), Sanza, Limbu shaman drum, Shehnaï (Nepalese shawn), snare drum, Tal (Egyptian cymbals), tambourine, tapes, toms, Tön Dhar (Tibetan narrow drum), violin, vocals, voices, woodblocks, wood percussions, zither-cymbalo,... The use of the traditional instruments, especially when they are sacred ones, has been made with the greatest respect. It is important to consider the particular cultural heritage of the indigenous peoples as a source of enrichment for the whole Humanity.

Swans - Miracle of Love

She holds a key to the room down there And I, I will follow, but I'll never fall in Yeah, we'll suffer for nothing and we'll never forgive God said to no one to do what he did One second in your presence is a miracle of love One second denied is a miracle of love The young man is weakness in a lover's disguise The woman is strong in her warm, bitter lies How will they hope what they can never perceive And how do they love what they fail to deceive One second in your memory is a miracle of lies One heartbeat in your body is a miracle of love White light on a black sky is a miracle from above One lonely moment in your arms is a miracle of love

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Tanta gente sem casa Tanta casa sem gente

A Comunidade do Além
Num momento feliz.
Esta comunidade já não existe.
Alguns dos actores infelizmente já faleceram, outros poderão hoje continuar sem abrigo ou estarem presos em hospitais, espero que a Sara Bidente já não viva na rua.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Tuíte Café de saco não manda ninguém de saco e tira o asco dos puxa-saco

 Quando já é difícil encontrar um café na vizinhança que não tenha fechado ou não esteja invadido pela música sertaneja e o teu único vizinho, com quem tu ainda trocas algumas palavras além do respeitoso «bom dia, boa tarde» e antigo colega de festança copofónica, que já poucas saudades deixam que não tenham sido escrevinhadas por alguma personagem do meu eu... 

e ele me diz que só quer saber de quanto lhe vai custar comprar um carro eléctrico enquanto eu lhe falo da obsolescência das baterias e dos prejuízos sociais e ambientais que são provocados ao produzir uma bateria de lítio... 

e ele me fala da teoria da grande substituição quando vê um negro entrar no café para registar o euromilhões rematando com «olha o que se passa em França, vais ver aqui dentro de alguns anos...»,


fica explicada a razão porque cada vez menos saio de casa e prefiro dialogar com as personagens dos livros que leio enquanto fumo cada vez menos, ouço um disco e bebo café de saco fervido no fogão da cozinha.

Salvam-se actualmente dois cafés a uma hora de distância: O Asa de Mosca e o Macau onde de vez em quando me reúno com os meus dois leitores preciosos.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Em agradecimento aos meus dois únicos leitores em papel da encadernação anónim@s do séc XXIII, transcrevo o mestre Tcheckoff:

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Se eu tivesse desejos de encomendar um anel, escolheria a divisa: «Nada passa!» Na realidade penso que nada passa e tudo deixa os seus vestígios; o mais insignificante dos nossos passos tem o seu sentido, quer nesta vida, quer na vida futura.

Não foi em vão que vivi a meu modo. As minhas grandes desgraças e a minha paciência sensibilizaram o coração dos meus conterrâneos e agora já não me chamam Melhor-que-nada. Já não fazem troça de mim e, quando passo pelo mercado, não me atiram com água. Acostumaram-se a ver em mim um operário, e a ver-me, a-pesar-de ser nobre, acarretar baldes de tinta e colocar vidros. Agora, muito ao contrário, dão-me encomendas de boa vontade e passo por ser um bom artífice e o melhor empreiteiro da cidade depois de Redka que, já curado e continuando a pintar cúpulas de campanários sem andaimes, continua a não ter forças para se impor aos seus auxiliares; corro a cidade, em vez dele, à procura de encomendas; contrato e pago operários; peço dinheiro emprestado com grandes juros e agora compreendo por que razão, por causa de uma encomenda insignificante, se possa percorrer a cidade dois ou três dias à procura de homens para cobrir um telhado. São delicados comigo; tratam-me por senhor e, nas casas onde trabalho, oferecem-me chá e mandam-me preguntar se não quero jantar. As crianças e raparigas vêm muitas vezes ver-me, cheias de curiosidade e compaixão.

Um dia, como eu estivesse a trabalhar no jardim do palácio do govêrno, a fingir mármore num caramanchão, o governador, que andava a passear pelo jardim, entrou ali e, por não ter mais nada que fazer, pôs-se a conversar comigo. Lembrei-lhe o dia em que me tinham obrigado a vir a casa dêle para uma explicação. Olhou-me um instante, depois arredondou a boca como um O, afastou os braços e disse:

-- Não me lembro.

Eu agora já envelheci, tornei-me silencioso, rude, severo. Raras vezes rio, e dizem que me pareço com Redka. Como êle, aborreço os operários com os meus sermões inúteis.

Maria Victorovna, a minha ex-mulher, vive agora no estranjeiro. Seu pai, o engenheiro, constrói um caminho de ferro nas província orientais e compra terras. O dr. Blagovo também está no estranjeiro. A propriedade da Dubetchnya voltou à posse da mâi do Tcheprakoff que a comprou vinte por cento mais barata. Moisés anda de chapéu de côco; vem muitas vezes, numa aranha, à cidade e pára em frente do banco. Dizem que já comprou, por cessão, um morgadio e faz constantemente preguntas mo banco acêrca da Dubetchnya, que também faz tenções de comprar. O pobre Ivan Tcheprakoff andou muito tempo a coçar as esquinas da cidade, sem fazer nada, e a embebedar-se constantemente.

Tentei dar-lhe trabalho e durante algum tempo andou connosco a pintar telhados e a pôr vidros nas janelas; chegou mesmo a gostar do trabalho e roubava óleo; pedia gorgetas e embebedava-se como um autêntico pintor. Mas depressa se aborreceu. Tornou-se triste e voltou para a Dubetchnya. E os operários confessaram-me, algum tempo depois, que os tinha incitado a irem com êle, de noite, matar Moisés e roubar a mãi.

Meu pai envelheceu muito. Está corcovado e passeia de noite em frente à porta de casa. Nunca vou visitá-lo.

Prokofy, durante a cólera, tratava os doentes a vodka com pimenta em que deitava alcatrão, levava dinheiro aos clientes e, segundo o que li no jornal da cidade, foi condenado a levar chibatadas por ter falado mal dos médicos, no seu talho. O caixeiro Nikolka morreu de cólera. Karpovna ainda vive e, como sempre, continua a amar e a temer o seu Prokofy. Quando me vê diz-me sempre, abanando a cabeça e suspirando:

-- Desgraçado! Desgraçado de ti!

Durante os dias de semana, estou sempre ocupado desde pela manhã até à noite, mas nos dias feriados, quando está bom tempo, pego na minha sobrinha ao colo (minha irmã esperava um rapaz mas nasceu-lhe uma menina) e vou devagar até ao cemitério. Fico lá muito tempo a olhar para a campa que me é querida e digo à pequenina que a mãi está ali deitada.

Às vezes encontro, perto da campa, Aniuta Blagovo. Cumprimentamo-nos e ficamos silenciosos, ou falamos de Cleópatra, da sua filhinha, da triste vida que levamos neste mundo; depois, ao sairmos do cemitério, caminhamos em silêncio e ela afrouxa o passo a-fim-de seguir mais tempo ao pé de mim. A pequenita, alegre e feliz, piscando os olhos por causa da luz crua, estende-lhe as mãozinhas; paramos então ambos a fazer-lhe festas.

Ao chegarmos à cidade, Aniuta Blagovo, perturbada e còrada, diz-me adeus e continua a caminhar sòzinha, séria e severa... Nenhuma das pessoas que a encontra pensará que ela acaba de passear ao meu lado e que até fêz festas à pequenita.

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páginas 168 - 171

Anton Tcheckoff em «Romance duma vida»

tradução de Cordeiro de Brito

edição Vasco Rodrigues \ editor, 1938



segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

You have to fight for your right to party

 


desenho a grafite, marcador de preto permanente e caneta bic 
sobre papel de 300grms
50cm por 70cm
2024
ZMB