quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Em agradecimento aos meus dois únicos leitores em papel da encadernação anónim@s do séc XXIII, transcrevo o mestre Tcheckoff:

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Se eu tivesse desejos de encomendar um anel, escolheria a divisa: «Nada passa!» Na realidade penso que nada passa e tudo deixa os seus vestígios; o mais insignificante dos nossos passos tem o seu sentido, quer nesta vida, quer na vida futura.

Não foi em vão que vivi a meu modo. As minhas grandes desgraças e a minha paciência sensibilizaram o coração dos meus conterrâneos e agora já não me chamam Melhor-que-nada. Já não fazem troça de mim e, quando passo pelo mercado, não me atiram com água. Acostumaram-se a ver em mim um operário, e a ver-me, a-pesar-de ser nobre, acarretar baldes de tinta e colocar vidros. Agora, muito ao contrário, dão-me encomendas de boa vontade e passo por ser um bom artífice e o melhor empreiteiro da cidade depois de Redka que, já curado e continuando a pintar cúpulas de campanários sem andaimes, continua a não ter forças para se impor aos seus auxiliares; corro a cidade, em vez dele, à procura de encomendas; contrato e pago operários; peço dinheiro emprestado com grandes juros e agora compreendo por que razão, por causa de uma encomenda insignificante, se possa percorrer a cidade dois ou três dias à procura de homens para cobrir um telhado. São delicados comigo; tratam-me por senhor e, nas casas onde trabalho, oferecem-me chá e mandam-me preguntar se não quero jantar. As crianças e raparigas vêm muitas vezes ver-me, cheias de curiosidade e compaixão.

Um dia, como eu estivesse a trabalhar no jardim do palácio do govêrno, a fingir mármore num caramanchão, o governador, que andava a passear pelo jardim, entrou ali e, por não ter mais nada que fazer, pôs-se a conversar comigo. Lembrei-lhe o dia em que me tinham obrigado a vir a casa dêle para uma explicação. Olhou-me um instante, depois arredondou a boca como um O, afastou os braços e disse:

-- Não me lembro.

Eu agora já envelheci, tornei-me silencioso, rude, severo. Raras vezes rio, e dizem que me pareço com Redka. Como êle, aborreço os operários com os meus sermões inúteis.

Maria Victorovna, a minha ex-mulher, vive agora no estranjeiro. Seu pai, o engenheiro, constrói um caminho de ferro nas província orientais e compra terras. O dr. Blagovo também está no estranjeiro. A propriedade da Dubetchnya voltou à posse da mâi do Tcheprakoff que a comprou vinte por cento mais barata. Moisés anda de chapéu de côco; vem muitas vezes, numa aranha, à cidade e pára em frente do banco. Dizem que já comprou, por cessão, um morgadio e faz constantemente preguntas mo banco acêrca da Dubetchnya, que também faz tenções de comprar. O pobre Ivan Tcheprakoff andou muito tempo a coçar as esquinas da cidade, sem fazer nada, e a embebedar-se constantemente.

Tentei dar-lhe trabalho e durante algum tempo andou connosco a pintar telhados e a pôr vidros nas janelas; chegou mesmo a gostar do trabalho e roubava óleo; pedia gorgetas e embebedava-se como um autêntico pintor. Mas depressa se aborreceu. Tornou-se triste e voltou para a Dubetchnya. E os operários confessaram-me, algum tempo depois, que os tinha incitado a irem com êle, de noite, matar Moisés e roubar a mãi.

Meu pai envelheceu muito. Está corcovado e passeia de noite em frente à porta de casa. Nunca vou visitá-lo.

Prokofy, durante a cólera, tratava os doentes a vodka com pimenta em que deitava alcatrão, levava dinheiro aos clientes e, segundo o que li no jornal da cidade, foi condenado a levar chibatadas por ter falado mal dos médicos, no seu talho. O caixeiro Nikolka morreu de cólera. Karpovna ainda vive e, como sempre, continua a amar e a temer o seu Prokofy. Quando me vê diz-me sempre, abanando a cabeça e suspirando:

-- Desgraçado! Desgraçado de ti!

Durante os dias de semana, estou sempre ocupado desde pela manhã até à noite, mas nos dias feriados, quando está bom tempo, pego na minha sobrinha ao colo (minha irmã esperava um rapaz mas nasceu-lhe uma menina) e vou devagar até ao cemitério. Fico lá muito tempo a olhar para a campa que me é querida e digo à pequenina que a mãi está ali deitada.

Às vezes encontro, perto da campa, Aniuta Blagovo. Cumprimentamo-nos e ficamos silenciosos, ou falamos de Cleópatra, da sua filhinha, da triste vida que levamos neste mundo; depois, ao sairmos do cemitério, caminhamos em silêncio e ela afrouxa o passo a-fim-de seguir mais tempo ao pé de mim. A pequenita, alegre e feliz, piscando os olhos por causa da luz crua, estende-lhe as mãozinhas; paramos então ambos a fazer-lhe festas.

Ao chegarmos à cidade, Aniuta Blagovo, perturbada e còrada, diz-me adeus e continua a caminhar sòzinha, séria e severa... Nenhuma das pessoas que a encontra pensará que ela acaba de passear ao meu lado e que até fêz festas à pequenita.

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páginas 168 - 171

Anton Tcheckoff em «Romance duma vida»

tradução de Cordeiro de Brito

edição Vasco Rodrigues \ editor, 1938



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