segunda-feira, 30 de junho de 2025

As aventuras laborais de mr. Cool

 As aventuras laborais de mr. Cool


Apanho o autocarro às nove horas.

Ligo o backoffice às dez e treze minutos.

Ligo o rádio. Tomo café. Vejo o email.

Vou ao multibanco ver se o boss depositou.

Não!

Não está disponível a remuneração em falta.


Passo o tempo a organizar a papelada.

Chega a nossa colega maia.

O pedro saúda-nos do chat.

Descarrego da net o Opel do Syd [Barrett]

Tiro fotocópias. 

Conversamos sobre acções a tomar.

Saio para o Xeirinho à uma da tarde.

O meu almoço: um carioca e um napoleão.

Não me recordo agora 

                    das notícias no jornal da tarde.

Sou um leitor compulsivo.

Tenho fumado menos.

Chega o Pedro. Fumamos. Vamos ao mb.

O boss não aparece há uma semana.

Amanhã é dia do trabalhador.

Temos de esperar até às 11h59m

    para passar os três meses de prazo legal.

Sim...

uma carta registada com aviso de recepção.

A Maia tem uns olhos lindos.

Bate o horário de fecho. Fecha-se o dia.

O último dia de trabalho.


Parecemos felizes. É a liberdade a chegar.


Vamos todos voltar ao nosso subúrbio

Onde não se faz nada.

E se nos virmos outra vez

Só se for em tribunal para ajudar a colega doutorada

E verificar que a Maia envelheceu

quando resolveu pintar os olhos

          mas continua bonita,

Que o Pedro tem vida dupla

e que visita o bar do contrabandista como eu,

Que a Secretária aparecerá mais tarde

num concerto de Gipsy Rufina e me olhará mal

e mostrará que nunca esqueceu as minhas cartas bomba.


Às onze e cinquenta e oito minutos

              tiro uma consulta de movimentos.

Às zero horas tiro outra.

Saldo: zero euros e nove cêntimos.

Existe motivo para justa causa.

Hoje dia um de maio, dia do trabalhador

estou oficialmente

                                       desempregado.

Vou ter tempo para ler todos os livros

                                                  que acumulei,

Vou ter tempo para ouvir todos os discos

                                                  que descarreguei,

Vou ter tempo de ficar maluco 

e escrever a psicose a crescer, 

a raiva a transbordar

por o subsídio de desemprego só durar 15 dias

e a indemnização não surgir

e o boss inadmissível dizer que a culpa é do sr A.

e o sr A mandar convites pelo hi5.

e eu acabar internado no hospital de Vallis.


domingo, 29 de junho de 2025

Homem, porque falas sozinho?

 Homem, porque falas sozinho?


Esta noite estou zangado.

Não compreendo a incompreensão 

                                              alheia.

Culpo-me por isso.

Tento explicar-me, pelo menos, ao outro que

          vejo no espelho quando fumo:

Talvez compadre...

não gostes de ninguém.

Talvez sejas rancoroso, misantropo,

com uma ideia muito grande

                                de ti próprio,

e claro compadre...

perdes o fio à conversa

                                several times,

acabas por lhes dar razão

e compadre, esses compadres 

            tornam-se sádicos porque

tu os deixas compadre...

Logo dou um chapo ao eu que fuma e digo:

cumpadri, 

o meu conhecimento é intuitivo, 

dedutivo,

como a nossa dialéctica, vês?,

a arrogância torna-se humildade,

planos se fazem, rupturas se anunciam.

Digo: não quero ninguém.

E depois digo e sofro por ninguém me 

                                            querer.


                      (A mão que não fuma 

bate na própria orelha)


quinta-feira, 26 de junho de 2025

A rainha do sertão

E então eu me maquilhei e pus uma roupa bonita e fui para a festa da patroa e sentei.
A patroa disse Minha nossa, mulher hoje estás bonita!
E eu falei É, hoje não sou uma escrava dura, sou rainha do sertão. 
E depois o filho mais novo da patroa veio e em vez de sentar do lado da mãe, sentou do meu, eu pensei Quero não. 
Depois eu fui fumar o meu cigarro e ele veio bater bola contra a parede no terraço e quando eu acabei ele veio e sentou comigo ao lado. 
E eu disse Joaquim, você está me pastoreando?
E ele olhou para mim com aqueles olhos de pidão e não disse nada mas hoje quando eu voltei ao trabalho de cuidar da avó ele esticou o pescoço de dentro do quarto e disse Podia vir como ontem, estava bonita ontem. 
Ó Joaquim, veja se se enxerga Podia ser sua mãe.
Já viste que menino mais atrevido?
Olha gata, uma vez escrava todos os dias rainha para nós, a deusa é grande. 

Anónim@s do século xxiii

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Deixe os doces!

 Fumei o último a ouvir

                       música clássica russa.

Hoje, dia de Carnaval.

Na sexta comprei, no sábado comprei.

No domingo, na segunda voltei a comprar.

Ganza à parte tenho notícias.


Acordei, desliguei o despertador, acendi

                                                   a luz.

Jejuei um charro, saí para o trabalho.

Estou maldisposto mas ‘tem de ser.’

Chego ao trabalho, dá-me a moleza.

Suspeito de folga, não chegou ninguém.

Saio para carregar o telemóvel.

Volto. Ninguém.

Telemóveis desligados.

Sinto-me fodido: é folga e eu aki!

Ligo ao boss inadmissível.

Voz monossilábica com sono.

Eu pergunto se, ele pergunta se não, dá folga.

Desligo o computador e            logo agora!

A secretária chega de óculos escuros.

(Boa nas horas, começa a sangrar do nariz.)

Diz que se atrasou, um café na cozinha...

Um cigarro: ela diz que não quer a folga.

Eu digo: ligaram-me, exposição à vista,

o boss inadmissível deu o ok.

Combinamos a estratégia a usar com o senhor A..


Chego a casa. Chegou Black Antlers: mais Coil.

Estou em jejum: endoscopia ao fim da tarde.

Agora apanho o autocarro, o senhor A. liga.

                                                     Não atendo.

Se amanhã perguntar, truncarei a verdade:

‘ligaram-me, tive que ir ver o espaço,

marcaram já uma data, não pude atender’


Agora: a endoscopia provoca-me vómitos.

O tubo não passa. Não se realiza a biopsia.

O médico diz: deixe de fumar. 

                              Tem uma úlcera jeitosa.

Angustiado pergunto: tem cura?

‘se deixar de fumar, 

                    tomar a medicação...

                                           deixe os doces!’


quarta-feira, 18 de junho de 2025

This is The Job Record

IRABCDJOL XV

This is The Job Record

01: Loin de Riga Central
02: Com aviso de recepção
03: Ajudar os Sem Abrigo
04: Entidade Patronal
05: Tijuana Hotel
06: Uit the postman
07: Liberdade 25

2025
Voice and instruments by ZMB

On track 01, lyrics tell of daily job struggle and use the sentence in French «Ca ne s’explique pas loin de Riga Centraal» from a song »Riga Centraal» by Jac Berrocal.

On track 02, lyrics use some words by Rodney Washka II on the Tozé Ferreira’s CD: Música de Baixa Fidelidade

Track 06 is a scratched message delivered by the postman to all his former lovers. Starts with a cell phone loop with birds and contains an audio sample from the Hollywood movie Van Gogh starring Kirk Douglas.


 

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Digo-vos que a tusa de fazer um desenho é mais potente que só escrever para depois lembrar um dia quando já nada existe

 Ouço na rádio antena 2

o programa Raízes esta noite com o cruzamento

de música clássica e flamenco.


Vallis dorme. Ouço o seu respirar pesado.

Ontem dormiu quase doze horas,

depois de dois dias sem dormir.

Está a cêgripe já na curva descendente.


Vallis ressona. Outras vezes,

sou eu que ajeito este caderno

                                 em que escrevo

mexendo nas mantas que nos cobrem

e ela quase que acorda.


Ouço o dedilhar da guitarra e beijo-a.


Ela, de olhos fechados e eu adorando

a sua beleza de olhos fechados

e ela de olhos fechados diz que me ama.

Isto dá-me tusa e faço

                                  um desenho.


sábado, 14 de junho de 2025

Vallis toma comprimidos para dormir em excesso.

 Vallis — a ‘boa selvagem’ do poema,

que nada sabe de tecnologias da informação

e a quem eu mostro o meu mundo nético;


Vallis pensa que os textos do blogue

                                  de uma escritora

são-me dirigidos a mim,

                       SÓ a mim e tem ciúmes.


O meu caso é mais grave,

comigo a psicose materializa-se.

Explico-me:


Um dia vejo num blogue um post sobre

uma banda de noise chamada Contagious Orgasm.

Durante a noite, ao fazermos yabyum

venho-me dentro de Vallis.

— Como foste capaz

— Deixei-me levar pela emoção


De manhã, vamos ao hospital,

uma pílula do dia seguinte e

um teste negativo.


Quando dizemos nessa tarde ‘até amanhã’

pressinto nos seus olhos a ambiguidade:

talvez se sinta ferida por o filho não nascer

mas se nascesse

seria minha a culpa e ela

apenas uma vítima

tal como é vítima do seu último homem.

Como quando nos zangamos, para ela

eu às vezes sou ele.

E o que se diz e ouve?

‘os homens são todos iguais’

e quem assim não é e é diferente

ou é maricas ou é maluco.


Vallis toma comprimidos para dormir

                                         em excesso.

Não quer acordar amanhã

nem nunca mais

e quando acorda

vai trabalhar como escrava

com a pujança de quem

                                        novamente

‘acordou para a vida.’


sexta-feira, 13 de junho de 2025

A benção, minha mãe

 -- Você fala como se os seus problemas fossem graves. Ainda ontem todo preocupado com a sua família...

-- Sim, gata, eu afinal tive sorte em ter pais santos. Olha, o meu antigo vizinho, lembras-te dele, do J? Na altura, ele com mais de sessenta anios, a mãe já não queria saber dele, e olha ele morreu antes da mãe que nunca mais soube dela...

-- Sim e o que é que ele fez à mãe?

-- Eram outros tempos. Anos 70. Ele meteu-se nas drogas. Ele e o irmão. O irmão ainda talvez viva dentro do hospital. O J foi reformado à força e despejaddo num casebre da mãe mas longe e sem luz e água mas com uma gata para caçar ratos. Olha o Giuliani morreu e o casebre ardeu.

-- É, meu amigo. Antigamente, era diferente.

-- Se fosse só antigamente, lembras-te do T? A mãe pôs e ganhou uma ordem do tribunal a impedir que ele se aproximasse dela a menos de duzentos metros...

-- Pois, ele alguma coisa fez...

-- Eu não estou a defendê-lo. O que é que ele fez? Durante um período da vida dele infernizou a vida da mãe com insultos. Se eu fiz o mesmo aos meus pais? Fiz! Mas olha, agora vivo com os meus pais outra vez e numa boa. Até acho que os ajudo. Mas o T não tem essa hipótese. Lembro-me de uma vez ele dizer que viu na rua a mãe e quis chegar perto mas não pode e chorou... Percebes?

-- Ele tem de pagar pelo que fez. Teríamos de ouvir a perspectiva da mãe...

-- Não percebes que é uma condenação para a vida? Uma prisão perpétua? O T tal como o J, eles têm saudades da mãe, arrependeram-se, estão orfãos. Diz-me lá: se o teu filho viesse ter contigo e dissesse Mãe me desculpa eu errei Me abençoe. Tu não lhe davas um beijo?

-- Com certeza. A mãe do T podia ir ao tribunal retirar a queixa.

-- Isto já foi há quase dez anos. Neste tempo a mãe já se esqueceu do T


quinta-feira, 12 de junho de 2025

A prima V. é tua, mano

 A prima V. é tua, mano

mano primo primo mano

a prima V. é tua, primo

se ela e tu quiseres

e nem que ela agora já me queira

porque eu agora arranjei uma dona

a minha mona não é a prima V.

e mesmo que antes tivesse invocado a prima V.

saiu-me na lotaria Vallis.


( e eu aqui rio-me pois o desenvolvimento

da vida-poema a previa

absurda mente)


Tem mania de polícia

ou será só

amor desesperado?


— Tens saudades minhas? 

tenho minha querida

— Que fizeste? já arrumaste?

ainda não meu amor

— Mas chegaste agora a casa?

sim minha amora

— Chegaste?

não minha sãota... cheguei a casa

pousei as coisas e depois fui a Lá

minha amora e só agora

estou em casa

só agora liguei o telemóvel

— E foste aonde? e com quem ‘tiveste?


domingo, 8 de junho de 2025

Carta manuscrita não enviada do hospital

 Transcrevo em baixo porque comecei a ler Cartas a Olga de Vaclav Havel e lembrei-me quando li logo nas primeiras páginas:''Penso em coisas totalmente diferentes. E como é irritante não poder escrever sobre elas. A prisão em si é, naturalmente de um tédio assustador.''

Olá prima V.,

como deves saber estou dentro

pela quarta vez

Gostava que me viesses ver.

Há dias caí da cama.

Não me recordo bem

contaram enquanto fumávamos.

Tu tratas-me por você,

a tua novela deve ser brasileira,

deves parecer a sónia braga

à procura da caderneta de um senhor.

Andam por aí muitos doppelgangers,

e por aqui também há muitas

todas querem que eu lhe ponha a mão

na conita

mas só se puderem mandar

e por breves instantes.

Algumas até gretadas dizem:

mata-me mata-me de amor

mas só por breves instantes

aquelas que me rodeiam vêem o goucha

e sofrem de ejaculação feminina e precoce

como se eu estivesse virado para ser

o menino debaixo da saia da socialite

ou devem pensar que sou o santa claus

ou até jesus?!

nem eu na minha psicose associo jesus.

Gostaria que me viesses ver

pois aqui é tudo igual

sabias que a bófia chegou

com um papel cheio de razão

mas com o meu nome mal escrito

logo mandei-os dar uma volta

no fundo da rua quem os chamara

pôs-se a andar de mansinho

também eles se vão embora

as pessoas agora andam cheias de medo

antes só quiseram saber quando

e qual o meu ponto de explosão.

É possível que permaneça aqui por muito tempo

continuam a mentir, andam na boa

e depois o senhor rufino pensa que os americanos

andam atrás dele

vai muito mal a saúde deste país

parece que as ilusões caíram, 

era o que restava a este país

eu — sentado numa retrete limpa

e sem cagar porque já não tenho vontade —

estou só a disfarçar

e a escrever este desabafo.

o mundo será demasiado pequeno

o bilhete será só de ida,

a estiva de vladivostok

os hashishin encarcerados jogam dominó

espero que não tenhas dor de cabeça

elas querem ir a marte

de vassoura

enterrada no buraco negro

magma incandescente e ar cheio de smog

porque não sou santo

a culpa também é minha

mas neste momento

não sinto qualquer ligação à minha família

nem ao mundo.

que sa foda


There's several ways to convince people

 


Fumo um sufi. Ouço Copacabala.

Vim de terras estranhas há duas horas.

Tinha fome. Em dois cafés diferentes tomei

dois cafés, um panike e um lanche aquecido.

Vim embora de terras que

hão-de ser sempre estranhas.

Já mudei de vida infindáveis vidas e

agora chego à conclusão:

é melhor ir trabalhar do que aturar pessoas

rabugentas. Hoje faz anos a república.

Há quem se case por obrigação,

outros por liberdade.

Há quem viva torturado por erros de liberdade.

Sei de quem falo.


Quem? Eu até sabia mas se não for eu já me esqueci.


Hoje chateei-me com ela.

Fui tentar confortá-la, dar-lhe ânimo mas...

esqueci-me de comprar almôndegas!?

Ela ficara em casa não tendo ido trabalhar

por causa da gripe.

Virou-se contra mim.

O pretexto foram as almôndegas.

Disse que não podia contar comigo.

Textualmente disse:

a merda é a mesma, ter ou não um namorado.

Disse que havia uma conspiração contra ela.

É mais um caso em que uma hospitalização

muda as pessoas à força e as torna

estúpidas e doentes mentais.

Comigo aconteceu o mesmo e agora

vejo nela semelhanças e não quero acreditar

na realidade:

ela engordou e parece um elefante,

além disso o seu volume de voz

provoca-me alucinações auditivas.

Ao ver-me na rua assobia para eu chegar perto

como se eu fosse um cão.

E o que é pior: 

Ver e amar um elefante ou ser um cão?

Eu quero ser o teu cão? Vallis, ouve:

— Assim, não quero mais ser o teu cão!

Rai’s partam as ilusões.

Ter-me-ei tornado merda

que só merda atrai?

Terei eu nunca deixado de ser merda?

sábado, 7 de junho de 2025

Gaza 2025


 

Gaza

óleo sobre tela

55cm por 46cm

2025

ZMB

Israel e Trump

mata à fome civis, dispara sobre médicos e pessoal médico, larga bombas sobre um campo de concentração cheio de crianças, chamado

Gaza

Eu não escondo a cara, não fujo para o abrigo, porque não há abrigo em

Gaza

sexta-feira, 6 de junho de 2025

E quer o pastel de nata mudar a constituição! Eu queria era que ela se cumprisse.

 Há dias o ex-ministro Álvaro, que ficou conhecido pelo ministro do pastel de nata, veio defender uma reforma constitucional que tirasse da constituição o artigo que impede o despedimento sem justa causa. 

Para este Álvaro, é importante facilitar os despedimentos dos trabalhadores.

Mas eu pergunto:

Não seria mais importante garantir o despedimento dos patrões em caso de justa causa?, no caso de eles incumprirem as suas obrigações no que diz respeito ao pagamento dos salários?

Dou dois exemplos: um de uma amiga e o meu.

A minha amiga não tem contrato e a patroa deve-lhe mês e meio de contrato. A minha amiga não tem alternativa: se abandonar o trabalho nunca mais receberá o dinheiro. 

Está lixada. A luta vai levá-la aonde? Ela no seu desespero oscila entre a cadeia (que para ela é hotel) e «mendinga» debaixo da ponte.

Eu há uns anos. Tinha um contrato. Fui obrigado a cumprir esse contrato durante três meses de salários em atraso para poder rescindir por justa causa e para ir ganhar menos para o subsídio de desemprego enquanto lutava na justiça por receber o que a lei dizia que eu tinha direito. Pois nunca recebi nada, nem esses três meses em atraso. 

Lixei-me: a luta levou-me ao hospital e ao grau menos que zero.

Mas eu sempre tive e ainda tenho os meus pais, até um dia. A minha amiga não tem ninguém. Ou tem-me a mim, que só sei escrever estes apontamentos que não demovem os patrões de serem uns fdp e pagarem, não nos tratarem como escravos.

Quem nos garante os direitos constitucionais como cidadãos? Quem nos garante que nos pagam a horas ou se alguma vez nos pagarão o trabalho efectuado?

E quer o pastel de nata mudar a constituição! Eu queria era que ela se cumprisse.


terça-feira, 3 de junho de 2025

Dedicado aos racistas que dizem que os ciganos são todos bandidos mas gostam de ouvir o Nininho

 
Nas minhas barbas


Na cooperativa agrícola, muito semelhante, como sistema e planos, à que visitáramos em Budapeste, encontrámos uma peculiaridade que chamou nossa atenção: entre os camponeses havia ciganos, famílias inteiras arando a terra. Para mim essa novidade rompia com o tabu estabelecido de que cigano é ladrão de cavalo e que as ciganas, além de ler a buena-dicha, não fazem outra coisa senão roubar. Tínhamos estado, é bem verdade, com os artistas do Teatro Cigano de Moscovo, mas cigano lavrando terra é coisa diferente, era a primeira vez que víamos.

Conversávamos com alguns deles quando se aproximou do grupo uma cigana, o filho de poucos meses escanchado na cintura. Eu nunca vira mulher mais bela. Os olhos rasgados e expressivos e os dentes alvos sobressaíam na pele fina e morena do rosto. Mesmo em desalinho, seus longos cabelos eram bonitos.

Impressionada com a formosura da moça, quis comentar com Jorge, chamar-lhe a atenção, mas chegava atrasada, ele a vira antes mesmo que eu e estava verdadeiramente encantado. Percebendo que a acháramos bela, a cigana ria faceira, fazendo charme, quando, de repente, ao se aperceber de que sua filha, menina de uns quatro anos, ali ao lado, puxava o rabo de um cachorro -- que lhe mostrava os dentes, pronto para mordê-la --, soltou um grito terrível: «Nandita!» Assustada, a criança largou a brincadeira e o cão saiu ganindo de dor do pontapé que levara daquela mãe apavorada. O sobressalto transfigurara a cigana, tornara-a ainda mais impressionante, uma fera!

Passado o momento de tensão, voltando a si, as mãos ainda trêmulas, ela pediu um cigarro a Jorge; enquanto o acendia, ele lhe dirigiu duas palavras romenas, expressão de que gostara e aprendera logo ao chegar: «Você é forte formosa!» Envaidecida, lisonjeada com o elogio, sentindo-se cortejada, a zíngara deu uma tragada, soltou a fumaça no rosto do galanteador e, acintosamente, o provocou passando a língua, de leve, nos lábios. Mulher mais atrevida! Senti-me humilhada, invadida por um ciúme mortal, não tanto pela petulância da audaciosa mas, principalmente, por ver Jorge entusiasmado. Tão balançado ele estava que nem conseguiu disfarçar. Engoli o sapo com dignidade, calada. Mas teria engolido mesmo? Por vezes o diabo do sapo me sobe à garganta -- como acontece neste momento --, pois não consegui ainda esquecer aquele frete -- como dizem os baianos --, ali, nas minhas barbas.



Página 330 - 331 de «Senhora dona do baile»

Zélia Gattai

Edição Publicações Dom Quixote