terça-feira, 3 de junho de 2025

Dedicado aos racistas que dizem que os ciganos são todos bandidos mas gostam de ouvir o Nininho

 
Nas minhas barbas


Na cooperativa agrícola, muito semelhante, como sistema e planos, à que visitáramos em Budapeste, encontrámos uma peculiaridade que chamou nossa atenção: entre os camponeses havia ciganos, famílias inteiras arando a terra. Para mim essa novidade rompia com o tabu estabelecido de que cigano é ladrão de cavalo e que as ciganas, além de ler a buena-dicha, não fazem outra coisa senão roubar. Tínhamos estado, é bem verdade, com os artistas do Teatro Cigano de Moscovo, mas cigano lavrando terra é coisa diferente, era a primeira vez que víamos.

Conversávamos com alguns deles quando se aproximou do grupo uma cigana, o filho de poucos meses escanchado na cintura. Eu nunca vira mulher mais bela. Os olhos rasgados e expressivos e os dentes alvos sobressaíam na pele fina e morena do rosto. Mesmo em desalinho, seus longos cabelos eram bonitos.

Impressionada com a formosura da moça, quis comentar com Jorge, chamar-lhe a atenção, mas chegava atrasada, ele a vira antes mesmo que eu e estava verdadeiramente encantado. Percebendo que a acháramos bela, a cigana ria faceira, fazendo charme, quando, de repente, ao se aperceber de que sua filha, menina de uns quatro anos, ali ao lado, puxava o rabo de um cachorro -- que lhe mostrava os dentes, pronto para mordê-la --, soltou um grito terrível: «Nandita!» Assustada, a criança largou a brincadeira e o cão saiu ganindo de dor do pontapé que levara daquela mãe apavorada. O sobressalto transfigurara a cigana, tornara-a ainda mais impressionante, uma fera!

Passado o momento de tensão, voltando a si, as mãos ainda trêmulas, ela pediu um cigarro a Jorge; enquanto o acendia, ele lhe dirigiu duas palavras romenas, expressão de que gostara e aprendera logo ao chegar: «Você é forte formosa!» Envaidecida, lisonjeada com o elogio, sentindo-se cortejada, a zíngara deu uma tragada, soltou a fumaça no rosto do galanteador e, acintosamente, o provocou passando a língua, de leve, nos lábios. Mulher mais atrevida! Senti-me humilhada, invadida por um ciúme mortal, não tanto pela petulância da audaciosa mas, principalmente, por ver Jorge entusiasmado. Tão balançado ele estava que nem conseguiu disfarçar. Engoli o sapo com dignidade, calada. Mas teria engolido mesmo? Por vezes o diabo do sapo me sobe à garganta -- como acontece neste momento --, pois não consegui ainda esquecer aquele frete -- como dizem os baianos --, ali, nas minhas barbas.



Página 330 - 331 de «Senhora dona do baile»

Zélia Gattai

Edição Publicações Dom Quixote


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