segunda-feira, 26 de outubro de 2015

A língua errante

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Porém, nem mesmo depois de a pintura em pastel, emoldurada a dourado e paga com o salário de um mês, ter chegado ao domicílio do médico, se obteve o cobiçado quarto individual: a paciente e a acompanhante teriam de se contentar com uma só cama, num quarto comum de seis camas. Dormiriam juntas, na mesma cama, duas noites antes e duas noites depois da operação da idosa.
Noites de gemidos e espasmos. Por vezes, ouviam-se longas confissões crispadas, palavras saídas do sono e de parte alguma. Uma espécie de murmuração doente da noite. Não, não era a tranquilidade exigida pela fase preliminar e pela fase de convalescença da delicada intervenção cirúrgica.
A voz da idosa captava as atenções. Uma lamentação codificada, uma língua bizarra, incompreensível. Apenas a nora sabia que se tratava da língua iídiche, embora nem ela entendesse o significado daquelas estranhas palavras.
Durante o dia, a idosa da cama do lado da janela falava romeno, somente romeno. A normalidade do dia não anulava, porém, a estranheza da noite. As camponesas das outro cinco camas perscrutavam-na, desconfiadas, não ousando pedir qualquer explicação à jovem mulher que dormia na mesma cama com a pagã.
Mais uma noite e, mais uma vez, a mesma alienação sonâmbula. Um sussurro, primeiro, breves sinais guturais, seguidos pelo ritmo alerta de uma confissão tormentosa, secreta. Um vocabulário enigmático, queixumes e reprimendas, líricas doses de ternura destinadas aos iniciados. A nora escutava, tensa. Uma espécie de desabafo hipnótico e dolorido, numa língua errante. A voz de um oráculo ancestral exilado, arrancando à eternidade uma mensagem ora mórbida e obstinada, ora branda e indulgente, as singularidades de uma fonética bárbara, sectária, electrizando a escuridão.
O dialecto alemão ou holandês, dir-se-ia, envelhecido e adoçado por um dramático langor, as inflexões eslavas ou espanholas e as sonoridades bíblicas, um lodo linguístico que reuniu e transportou consigo afluentes de toda a espécie. A idosa contava aos antepassados e aos vizinhos e a ninguém os episódios da errância, um monólogo retorcido, por vezes, em queixumes e trepidações que não se sabia se eram brincadeira ou ferida. A odisseia da diáspora, o pânico do amor, a intimação da divindade, os medos do presente? A noite não permitia mais do que instantâneos codificados, confusos espasmos do desconhecido.
De manhã, como se nada tivesse acontecido, a paciente voltava à língua diurna, comum a todos.
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, página 127
"O regresso do hooligan"
Norman Manea
Edição Asa

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