O Escritor sonhava pensando que o sonho é invisível. Que Rafaela fazia com os seres o que sua mãe fizera com a pintura. Filtrando sucessivamente as escamas do real até ficar somente o que não se vê. E ser a parte obscura aquela onde estalamos os dedos, chamar o fogo e o gelo, e depois o fogo derreter o gelo e a água apagar o fogo. Não se trata de desumanizar a arte, trata-se de lhe dar um canal propício para o que já somos sem saber. Pintar o corpo único já se torna inócuo, diria ela levitando, tens vários corpos em cima da mesa e se não os vês é porque estás a mudar de pele, a serpente zanga-se contigo e por isso vem tanta gente perguntar-me o significado dos meus versos. No fundo querem circular mas falham os pés, são assim as pessoas e as artes malabares. Eram respostas como estas, entre o cínico e o genuinamente interessado, que faziam da mãe de Rafaela o centro da sala onde não havia centro. Menos luz.
O Escritor parou. O livro continuava a ser escrito. Pensou em Rafaela e no que ela se tornava, feita de homens azuis e bruxas, de uma Criança que morria criança, de um Homem Azul que noutro dia visitei e ainda sabe disparates que me fazem sorrir, de uma velha que era feita de todas as lições que não cabem nos dedos de uma mão agrafada só por dentro. O Escritor pensou que o seu amor podia abarcar o lago maior. Rafaela tornava-se uma base de dados dos seres que nos respiram perto, os mortos acabados de morrer e que Maria amparava na sua morna temperatura; e os que o Escritor fazia coincidir nas páginas de um livro que o obrigavam a escrever. Maria,a branca, nem ela imune ao triste comércio das sombras, o desvario tolo dos comandos que agora ordenham o mundo como uma vaca que nós todos conhecemos e tratamos.
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, página 112
"A resistência dos materiais"
Rui Costa
Edição exodus, Jan 2008
«Uploaded for my mother. :)», says the Wizard of Ass
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