'
Enquanto comíamos perguntei a Marie, como é que o criado podia ser empregado num café antes de morrer, se era marinheiro. Mas ela não se perturbou com tão pouco:
-- Era, evidentemente, durante as licensas. Uma vez em terra, vinha ver a amante, que lá trabalhava. E, por amor, servia com ela os copinhos de vinho branco e os cafés cremes. O amor faz fazer grandes coisas. E a amante, que foi feito dela?
Quando soube do trágico fim do seu apaixonado, suicidou-se, comendo uma pizza industrial.
Em seguida Marie quis saber como viviam as pessoas em Moscovo, uma vez que acabava de me atribuir a nacionalidade russa. Disse-lhe que ela própria também devia saber, visto que era minha filha. Então inventou uma nova história, de dormir em pé:
-- Não, nós não morávamos contigo. Fomos raptados por saltimbancos, Jean e eu, quando éramos ainda bebés. Vivemos em caravanas, percorremos a Europa e a Ásia, mendigámos, cantámos, dançámos em circos. Os nossos pais adoptivos obrigavam-nos mesmo a roubar dinheiro e coisas nas lojas.
-- Quando desobedecíamos, castigavam-nos com crueldade: Jean tinha de dormir no trapézio voador e eu na jaula do tigre. Felizmente o tigre era muito amável; mas tinha pesadelos e rugia toda a noite: isso acordava-me em sobressalto. Quando me levantava pela manhã, não tinha dormido o suficiente.
-- Tu, durante esse tempo, tu corrias o mundo à nossa procura. Ias todas as noites ao circo -- um circo novo em cada noite -- e andavas pelos bastidores para interrogar todas as crianças que encontravas. Mas possivelmente olhavas sobretudo para as artistas... Foi só hoje que nos reencontrámos.
Marie falava muito depressa, com uma espécie de convicção antecipada. De repente a excitação passou-lhe. Reflectiu um momento, subitamente sonhadora, depois terminou com tristeza:
-- E ainda não temos a certeza de nos termos encontrado. Possivelmente não somos nós, nem tão pouco tu...
'
, páginas 67-69
"Djinn"
Alain Robbe-Grillet
Edição Livros do Brasil
Sem comentários:
Enviar um comentário