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Cha fecha a porta do quarto, desce as escadas interiores, abre e fecha a porta da casa de hóspedes, desce os três andares de degraus de madeira carcomida e chega à porta da rua. Abre e sente o bafo do calor. Na rua principal, atravessa para o lado do rio, desce ao cais e recorda que os pescadores, que costumavam passar o tempo na pesca ocasional do robalo, desapareceram. Dá-lhe vontade de gritar contra a polícia marítima, também contra a autoridade municipal: «Afinal vão construir aqui, há planos para isso, um cais de embarque para grandes barcos-hotel, só se preocupam com o que podem ganhar de taxas, uma grande empresa paga mais taxas que um pescador,-- fora com os pescadores! -- é o que os palhaços pensam, e pior, executam, o que eles se estão perversamente a esquecer é que esta é terra de pescadores e não só, embarcadiços, engajados, casas de apoio, toda a gente depende do mar, estão a afastar as pessoas e a substituí-las por aquilo que elas chamam de estrangeiros e eu chamo de turistas, nem todos podemos pagar preços de turista, e porque haveremos de ser turistas na cidade onde nascemos!?»
Cha senta-se num dos poucos bancos de madeira e põe-se a observar o rio correndo para poente. «Até estes bancos vão desaparecer, vai chegar o dia em que eu queira ir tomar um café e aproveitar para ler no jornal as notícias do mundo… e não haverá um local acessível à minha carteira. Já não se pode fumar nos cafés, as esplanadas estão cheias e são caras, lá está… são para turistas. Mas eu não sou turista e começo a ficar sem opções, também não sou um residente, sou novo aqui, estou aqui faz três meses para a semana…» Cha enrola o último cigarro e continua a falar sozinho em pensamento: «A jukebox, hoje, deve estar insuportável, mas tenho de lá ir, hoje sem falta, tenho de dar a cara hoje, tenho que voltar ao local do crime, sei que, ao princípio, os residentes me achavam um capitão rico, não só o Sancho, a senhoria, a senhora do café que me indicou a casa… se calhar pensavam que eu lhes ia pagar uma taxa diária… só porque alguns passam, passaram fome, ainda há quem se lembre da Grande Fome… eles pensavam assim e vendo o modo como eu me comporto, como me pareço com um tolo quando falo, quando bebo café, quando começaram a ver que não vão mais obter favores de mim, porque eu sou igual a eles quando eles pensavam que eu lhes ia dar dinheiro a ganhar como um verdadeiro capitão faria… e como eles finalmente vêem que eu não passo de um merdas que tem tanta fome como eles… eles batem-me e ninguém defende um bêbado porque eu, na verdade, sou um bêbado que não é turista nem é capitão, é um gajo de fora, um não-residente, um merdas que vem comer as nossas mulheres!»
Aqui, o capitão Mancha sorri, deita a beata fora, repara que estava a fazer literatura com a sua própria vida, o Sancho não lhe batera por causa das mulheres residentes, onde todos se conhecem e são família de todos. Não. Sancho batera-lhe tão somente porque quando voltara da casa-de-banho da jukebox, onde fora limpar o vomitado, o capitão estava-se a rir do sucedido e a perguntar: «Onde está o Sancho?» «Tu vomitaste sobre ele!», disse o Neca, e o capitão riu-se aliviado por ter vomitado, o seu estômago estava a borbulhar há minutos, nem sequer reparou em cima de quem vomitou e quando o soube riu-se, começara a não gostar da conversa daquele residente, incomodava-o que ele o quisesse extorquir. «Estás-te a rir ó otário não passas de um otário!», disse Sancho. Ora Cha, aliviado e alegre e talvez já lúcido e a demonstrar a sua verdadeira natureza, deu-lhe para ser insolente e desafiar o Sancho e dizer «Se queres bater bate!» e o Sancho bateu, deu-lhe uma bofetada com a mão fechada e foi-se embora em tronco nu e para evitar confusão. Cha encaixou o murro, olhou para o Sancho e concordou com um olhar firme que foi bem dado, como se aceitasse o castigo, levantou-se, ignorou o Neca e foi-se lavar.
«Tenho de lá ir hoje, agora, mas tenho receio, estou com algum medo, e se ele vem pedir mais explicações, hoje não me sinto um herói trágico como ontem, hoje sinto-me um cobarde sem amigos, e a jukebox a esta hora há-de estar cheia de amigos dele… tenho de lá ir de qualquer modo, não posso vergar aqui, não posso dar parte de fraco, tenho de enfrentar a realidade.»
O capitão levanta-se e começa a caminhar ao longo do rio, a jukebox não é longe. Ao virar à esquerda, entra na rua da jukebox, começa a aproximar-se, como suspeitava estão mais pessoas cá fora a fumar do que habitual. Abranda o passo, procura reconhecer as caras, ver se conhece alguém, tenta manter um ar indiferente, como se nada se tivesse passado. Ainda assim, entra na jukebox procurando ver amigos ou o Sancho. A salvação ou o medo. Reconhece alguns residentes mas senta-se sozinho ao balcão.
-- Ora o que vai ser hoje caro amigo --, pergunta o dono com cara de caso.
Cha olha para ele, vê o seu olhar de preocupação e sorri pela primeira vez dentro da jukebox. Tenta permanecer indiferente ao silêncio que se instalou. -- Queria um pirata de cerveja… e mortalhas das pequenas, que tabaco tens?
-- É o que está à mostra…
-- Pode ser um Blue Ridge de cinquenta gramas…
O dono serve-o. Cha olha furtivamente em volta, repara que Sancho assomou à porta e, então, desfaz a sua indiferença e revela a sua ansiedade ao dizer: -- Quanto é? Pago já!
-- Está com pressa amigo, são cinco euros e trinta, mas tenha calma, esteja como em sua casa.
Cha beberrica o copo e tenta pensar noutras coisas mas está atento. «Ele sentou-se, está a falar com o Valter, o que está a dizer?… Não consigo ouvir. Olhou para mim. Está de certeza a falar de mim. É como se não compreendesse, como se não compreendesse o que estou a fazer aqui, não me parece que me vá fazer mal, parece com cara de caso, claro otário esqueceste!, está com a cara do teu caso de ontem, palhaço é o que eu sou, além disso tenho vergonha, não o culpo, ele bateu-me mas a culpa foi minha, foi uma situação impossível para ele, era impossível manter a honra sem me bater… mesmo perante um bêbado… mesmo que se não justifique bater num gajo que não está no seu perfeito juízo… é a lei da selva, da honra do mais forte… e eu que estou aqui a fazer, o olhar para o chão? Está tanto silêncio, vou pôr um disco, vou investir dois euros naquela compilação pirata de êxitos do Jimi!, é isso.»
Cha dirige-se à maquina histórica, selecciona o código do cd, introduz a moeda e volta para o seu lugar. Quando se senta, ouvem-se os primeiros acordes de Purple Haze. Tem uma ideia luminosa: «É isso, a meio do disco toca o Are you experienced, eu ouço a música e saio de fininho, mais meia-hora a esbracejar neste inferno e saio sem olhar para ele, tenho que passar por ele, tenho que fazer cara de mau, não posso sorrir como um palhaço quando quero desviar a atenção ou a concretização de um assunto, tenho de ser homem e não palhaço. Tenho de ter honra hoje e começar a vir aqui menos vezes, encontrar alternativas.»
Assim foi, saiu a sentir-se um herói mas cheio de medo e também vergonha, estes pensamentos duraram toda uma semana, tinha de falar a alguém disto, sentia-se sufocar sempre que se cruzava com o Sancho e baixava a cabeça para não lhe ver os olhos, chegou à conclusão que devia abordar o tema na consulta com a psiquiatra, Reflectiu o mais que pôde. Preparou um discurso, seria o seu terceiro discurso perante esta nova médica, seria o mais importante, um discurso em que se falhasse ele-próprio lhe pediria o seu próprio internamento.
As chuvas começaram, era início de Outubro, o Verão fora-se num instante.
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Claudio Mur