sábado, 14 de maio de 2016

A canção assustada e o ofício de viver (de narrar a dor)
ou a hipocondria da úlcera nervosa, como me disse, uma vez, o médico de família



Meredith Monk
'The scared song'
from the record 'Do you be'

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Observo que a dor embrutece, estupidifica, esmaga. Todos os tentáculos com que outrora sentia, tacteava e explorava o mundo, estão como que cortados e canceroso o coto. Passo o dia como alguém que bateu com o joelho numa esquna: o dia inteiro igual àquele instante intolerável. A dor está no peito, que me parece arrombado e ainda ávido, pulsante de um sangue que foge e não volta, como sucede quando ha uma enorme ferida.
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, página 96


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A dor não é, de forma alguma, um privilégio, um sinal de nobreza, uma recordação de Deus. A dor é uma coisa bestial e feroz, banal e gratuita, natural como o ar. É impalpável, evita toda a luta e a prisão; vive no tempo, é a mesma coisa que o tempo; se tem sobressaltos e gritos, é apenas para deixar mais indefeso ainda aquele que sofre durante os instantes que se vão seguir, durante os longos momentos em que se saboreia a tortura passada e se espera a seguinte. Estes sobressaltos não são a dor propriamente dita, são instantes de vitalidade inventados pelos nervos, para fazer sentir a duração da verdadeira dor, a duração cheia de tédio, exasperante, infinita do tempo-dor. Quem sofre está sempre em estado de expectativa -- expectativa do sobressalto e expectativa do novo sobressalto. Chega o momento em que se prefere a crise do uivo à sua expectativa. Chega o momento em que se grita sem necessidade, a fim de romper a corrente do tempo, de sentir que acontece qualquer coisa, que a duração eterna daquela dor bestial foi interrompida por um instante -- mesmo que seja para recrudescer outra vez.
Por vezes, vem-nos a suspeita de que a morte -- o inferno -- consistirá ainda no fluir de uma dor sem sobressaltos, sem vozes, sem instantes, totalmente feita de tempo e eternidade, incessante como o fluir do sangue num corpo que nunca há-de morreer.
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, página 199


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Narrar as coisas incríveis como se fossem reais -- sistema antigo; narrar as coisas reais como se fossem incríveis -- sistema moderno.
', página 264

Cesare Pavese
'Ofício de viver' diário 1935-1950
Edição Portugália Editora

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