sexta-feira, 22 de julho de 2016

Balada dos que já nascem mortos

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Com a arrogância de um actor habituado ao sucesso, Tareq percrutou insolentemente aquela assembleia, que representava a população de Dofa, e fungou com desdém. Depois, ergueu o braço com um gesto soberano e reclamou o silêncio ao bando infantil que o acompanhava no seu périplo. (...) Enquanto abria passagem por entre as mesas -- parecendo um gavião aproximando-se velozmente da presa --, o seu olhar cruzou-se com o de Samantar. Tareq lançou-lhe um sinal de conivência, como que para incitá-lo a seguir o seu jogo.
Rapidamente se fez luz sobre o personagem que suscitava o interesse de Tareq e que não era outro senão Higazi, o qual não abandonara o seu jornal e parecia insensível ao silêncio súbito que se tinha instaurado na esplanada. Com efeito, e para surpresa de todos, Tareq foi visto a parar à frente do homem da fatiota semi-militar, imobilizando-se numa postura exageradamente humilde, parodiando o mais absoluto respeito. Durante um momento, Tareq manteve aquela atitude servil, provocando a perplexidade de todos os espectadores daquela cena, que especulavam sobre os excessos oratórios de Tareq para reconfortarem as suas próprias incertezas. Era sempre agradável ouvir alguém fustigar o governo, qualquer governo, mas o que aquele idiota estava a fazer não fazia qualquer sentido. O que eles rejeitavam acima de tudo era o tédio. Começaram a sentir-se frustrados quando Higazi que não podia continuar durante muito mais tempo a ignorar a óbvia agressão à sua tranquilidade, acabou por pousar o jornal, dando consigo de caras e sem hipótese de socorro com a silhueta filiforme de Tareq, cujos traços zombeteiros representavam a máscara do escárnio. (...)
Apenas Samantar atingira o significado daquele ridículo gesto de vassalagem. Com a sua intervenção cómica, Tareq pretendera assinalar-lhe a presença de um indivíduo de uma incontestável autoridade e cujos movimentos ele tinha todo o interese em vigiar daí em diante. Mas qual era a essência daquela autoridade e em que se baseava? (...)
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, página 124-127

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Higazi era uma das poucas pessoas a quem a sinistra colecção de retratos que ornamentava a parede do gabinete ministerial não impressionava. Muito pelo contrário, considerava a sua presença entre aqueles dignitários -- mesmo falecidos -- um privilégio particularmente tonificante. O sentimento da sua importância multiplicava-se por dez naquela atmosfera austera onde os veneráveis emires o acolhiam na sua respeitável confraria. (...) Pois, à semelhança do seu mestre, Higazi era ambicioso. Uma ambição comedida, é certo, mas não desprovida de uma indomável determinação. Nascido na miséria, tinha seguido a carreira de todos os deserdados do mundo, até ao dia em que um incidente trivial o pusera na via do sucesso. (...) Aos vinte anos, deseperado, mas não completamente vencido, vagabundeava pelas ruas de Dofa, (...), quando, (...) viu um agente da polícia -- uniforme branco e matraca na cintura -- a dar vários estalos, e com um afinco bestial, num pobre diabo acusado de ter, com o seu andar desajeitado, manchado de lama o fundo das suas calças. (...) Esta constatação constitui para Higazi uma verdadeira iluminação. Acabara de compreender que aquele que tinha o direito de seviciar impunemente e com tamanha brutalidade o seu semelhante (o que deixava adivinhar as execuções mais sangrentas) ocupava seguramente o melhor papel na sociedade, sem por isso dispor dos recursos da fortuna. Não era preciso ter os bolsos cheios de ouro para atingir a posição de um vulgar tirano. Como era possível não ter ainda pensado naquilo ao longo do seu interminável calvário de deserdado da vida? Aquele uniforme branco, que ele apenas notara por receá-lo, pareceu-lhe mais desejável do que a coroa de um monarca. Sem mais demoras, juntou o que lhe restava de audácia e correu a apresentar-se no centro de recrutamento onde foi contratado com gratidão, dada a escassez de candidatos. Desde a sua entrada em funções -- finalmente salvo da fome e das humilhações -- havia decidido não se contentar em ser um simples organismo da máquina de repressão.
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, página 152-154

'Uma ambição no deserto'
Albert Cossery
Tradução de Sarah Adamopoulos
Edição Antígona

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