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-- Posso perguntar-lhe qual o seu direito?
-- O senhor é um vicioso.
-- Basta! Basta! Dá-me licença, peço-lhe desculpa, se faz favor, senhor juiz, eu, Léon Wojts, exemplar pai de família, sem ficha judiciária, tendo trabalhado durante toda a minha vida, dia após dia com excepção dos domingos, entre o banco e a barraca, entre a barraca e o banco, presentemente reformado, mas não menos exemplar, levanto-me às seis e quinze, adormeço às onze e trinta (excepto no caso de um bridgezinho, com a autorização da minha cara-metade), e quanto à minha cara-metade, meu caro senhor, em trinta e sete anos de vida conjugal nem uma só vez, com outra mulher eu, ah... ah... Nunca a enganei. Nem uma só vez. Trinta e sete anos. Nem uma única vez! Já pode ver! Sou um marido afectuoso, bom, compreensivo, cortês, conciliador, o melhor dos pais, cheio de amor, cheio de boa vontade para com os outros, agradável, benevolente, prestável, diga-me lá então, se faz favor, o que é que, em toda a minha existência, o autoriza a fazer-me tais... insinuações, como direi... que eu pretensamente... à margem da minha imaculada vida conjugal... a bebida, o cabaré, a orgia, o deboche, a libertinagem com pequenas, ou até mesmo, quem sabe, bacanais com odaliscas, à luz dos lampiões, mas o senhor bem pode ver, estou aqui sentado, no maior sossego, a tagarelar e (atirou-me em cheio, numa voz triunfal) com a maior correcção e tutti frutti.
«Tutti frutti»! O canalha!
-- O senhor é onanista.
-- O quê? Desculpe? Que é que disse?
-- Cada qual é como é!
-- Que quer isso dizer?
Aproximei a minha cara da cara dele e disse-lhe:
-- Berg!
Foi eficaz. Hesitou, primeiro, surpreendido por a palavra lhe aparecer vinda do exterior. Espantado, olhou para mim com ar irritado e chegou mesmo a resmungar:
-- O que é que está para aí a dizer?
Mas logo o sacudiu um riso mudo, dir-se-ia que quase inchava de hilariedade:
-- Ah ah ah, pois sim, concordo, bergamento do berg em dupla ou tripla dose, berg, discretibus e secretibus por meio do sistema específico, a cada instante do dia e da noite, e de preferência à mesa familiar, na casa de jantar, bembergamento solitário e discreto sob o olhar filial e esposal! Berg! Berg! O meu caro senhor tem olho! No entanto, se mo permite...
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, página 111-112
'Cosmos'
Witold Gombrowicz
Tradução de Luiza Neto Jorge
Edição Vega
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