sábado, 8 de abril de 2017

Já não havia qualquer ordem,
a cada momento surgia algo inesperado.
Era impossível estar preparado.

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Polzer aproveitava todas as oportunidades para sair de casa. Nos quartos da casa da Senhora Porges reinava a inquietação. O enfermeiro passava pelas portas sem se fazer notar. De repente, lá estava ele ao nosso lado. Sem que o tivéssemos ouvido entrar. Karl chamou-o. Agora Polzer tinha de passar as manhãs todas sentado ao lado dele. A revelação da viúva tinha aumentado a consternação e o caos. As bochechas da viúva estavam pálidas, gordas e imóveis. Parecia-lhe que, dia após dia, aumentava aquele corpo cruel que carregava o fruto gerado contra a sua vontade.
Depois do almoço, conseguia esgueirar-se para fora da casa sem ser visto. Karl dormia, o enfermeiro estava no seu quarto e lia histórias da vida dos santos, a Senhora Porges lavava a loiça na cozinha. Polzer ia para junto do rio. Caminhava pela margem, no sentido contrário ao da corrente, e quando fazia sol sentava-se sempre no mesmo banco. Queria pôr tudo em ordem, pôr as coisas todas em contexto, pois já não havia qualquer ordem, a cada momento surgia algo inesperado. Era impossível estar preparado. Não havia uma réstia de regularidade por que se reger. Se calhar devia levantar-se, agora mesmo, ir ao banco, sentar-se à sua secretária, retomar o trabalho onde o havia interrompido. Não tinha dúvidas de que mesmo lá estaria tudo de pernas para o ar, como em casa. A ordem com que ele, anos a fio, havia guardado os papéis fora perturbada, tudo fora do lugar, e entre uma coisa e a outra havia uma ligação obscura. Tinha de ir lá e pôr as coisas em ordem, e depois também em casa tudo se começaria a desenredar. Agora estava lá alguém cujo destino se interceptara com o de Polzer. Que quebrava a regularidade da vida de Polzer. Alguém que deixava as coisas incompletas, que cometia erros, que emaranhava tudo aleatoriamente. Alguém que não conhecia e que o enterrara a ele, Polzer, na desordem e no caos. Tinha de se levantar e ir para o seu posto e começar a desenlear os fios.
Polzer sorriu com a ideia.
A ordem está perturbada, pensou. Sentado no banco de jardim, olhava para o rio. Temos de a repor, para tudo salvar. Não é crendice, como diz o Karl. Talvez seja temor a Deus. Porque Deus é tranquilidade, certeza e ordem.
Mas Polzer sabia que não podia ir ao banco. A sua ida incomodaria Fogl e os outros. Nunca mais o queriam ver. Nada podia fazer para impedir que aquele que se sentava agora no seu posto lhe restituísse a ordem, nada podia fazer porque tudo se precipitara. Restava-lhe apenas deixar as coisas acontecer.
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, página 139-140

"Os mutilados"
Hermann Ungar
tradução do alemão (Checoslováquia) por Vanda Gomes
edição E-Primatur, 1ª edição, 2ª tiragem Fevereiro 2016

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