domingo, 21 de junho de 2020

Notícias da guerra

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A ilha está calma. Este fim-de-semana nem os pássaros se ouvem. O comandante baixou o som da rfm e o arraial terminou. Estamos num período de tréguas.
A saber: neste momento, o comandante é suspeito de agressões verbais, tentativa de arrombamento e invasão de propriedade e tentativa de agressão física. O agente da polícia, que recebeu a queixa e a passou ao papel na esquadra, ao ouvir que eu queria apenas que a coisa parasse e pudesse viver em paz e que, embora não pudesse com o comandante fisicamente, não tinha medo de agir apresentando queixa no sentido de lhe meter medo, o agente disse: 
-- Esse Luis já é nosso conhecido, mas não se trata só de meter medo, trata-se de não retirar as queixas. -- Sim, disse o pintor, eu quero levar a queixa até ao fim.
-- A porta está danificada?
-- Não.
-- Então, diga lá os insultos que recebeu?
-- Eu sei lá, a partir de um momento desliguei, mas gravei os insultos e as ameaças que ele fez depois que a polícia foi embora, ele voltou e disse «a polícia disse para estar sossegado até à meia-noite mas depois tu vais ver!», tenho uma cópia aqui numa pen se quiser copiar...
-- Agora não, guarde para o tribunal. E... mas depois da meia-noite ele fez alguma coisa?
-- Não, não fez. Ele sabe que a vizinhança lhe chamava a polícia por causa do barulho, ele não é burro.
O agente pega numa caneta após teclar no computador e diz ao pintor: -- Mas diga lá o que ele lhe chamou.
-- Ladrão, insultou a minha mãe, paneleiro, paneleiro a gasol, vou-te foder as costas com uma pistola de aço, meter-te uma granada pela janela, sei lá o que ele disse... mas quando vi que depois dos pontapés ele não arrombava a porta, ripostei e insultei-o de volta, chamei-o de corno várias vezes, ele é Corne-Real e eu chamei-o de corno real, chamei-o de papagaio.
-- O senhor, sorri o agente, foi valente, está com os seus amigos em casa deles e numa conversa... numa conversa tipo de café... chama-lhe drogado...
-- Eu não lhe chamei drogado, disse-lhe que o Tony Carreira não tinha aspecto e ele tinha.
Na sala ao lado, ouvem-se os risos de um ou mais agentes da esquadra e eu aproveito para dizer que chamar drógado ou paneleiro ou seja o que for, isto são apenas insultos genéricos, que não dizem nada e são apenas ruído. E eu não fui genérico, fui específico: disse que ele tinha aspecto de fumador de coca e até nem disse que ele fumava, disse que tinha aspecto, ora para ele o Tony tem aspecto de fumador e o Tony não fuma, por isso, ele, Luis, pode ter aspecto e não fumar. Quanto ao ser drogado, há muito tipo de drogas, há as legais ou oficiais: o tabaco, o álcool, os comprimidos de farmácia, o jogo de casino; há as semi-legais: a canábis e os ectâsis e há as ilegais: a cocaína e a heroína. E cada uma tem o seu tipo e aspecto de consumidor. Mas o pintor responde: -- Oh fui valente em quê?
-- Estar ali a defender uma pessoa que não você conhece e dizer isso ao seu amigo...
-- Eu nem gosto da música do Tony...
Após um momento, o agente regressa com algumas folhas e dá-as a assinar ao pintor. O pintor lê. O agente explica: 
-- Como não houve agressão física de verdade não podemos intervir, agora a tentativa de arrombamento fica registada, quanto às agressões ao bom nome... isso é um crime particular, tem de se constituir como assistente, arranjar advogado e pagar duas unidades de conta, será aberta uma investigação...
O pintor pensa «um advogado do apoio judiciário nada pode contra um rato de advogado pago pela família corne-real»... pergunta por fim:
-- Quanto é uma unidade de conta?
O agente diz e o pintor logo esquece, afinal duas unidades de conta é quase o valor de uma prestação mensal da sua reforma. Acaba por dizer: -- Então, eu desisto das agressões verbais na queixa.
-- Receberá em casa o ofício de arquivamento.
O pintor assina os ofícios de registo da queixa como denunciante e vítima, e devolve os de direito ao agente. Este diz ao pintor a rir-se: -- Mas o senhor diga lá... o que quer dizer «paneleiro a gasol?»
-- Ah sei lá, tem de perguntar a ele. Deve ser um que mete rolhas.
O agente acaba por dizer: -- Olhe sabe, isto parece uma daquelas coisas de crianças que se põem a disparatar.
-- É, ele diz mais do que aquilo que faz. Bom dia.
O pintor vem para casa a pensar «pelos vistos, ele tem que me bater para a justiça andar para a frente mas eu defendo-me, acerto-lhe o passo, e depois alego legítima defesa.»
O pintor vê um pedra suficientemente pesada de cimento e guarda-a no bolso.
Ao chegar perto de casa, vê o Giuliani. Este diz baixinho:
-- Olha... ele está fodido contigo, tem cuidado, estou do teu lado.
-- Giu, que tens no nariz?
-- Foi ele que mo partiu!
-- Mas tens que apresentar queixa!
-- Ó, a polícia goza-me e não faz nada, agora já está tudo bem.
-- Tens que apresentar queixa, ele já te partiu uma clavícula, agora o nariz...
-- Mas posso falar como testemunha...
O pintor pensa «testemunha... testemunha minha que raio, um gajo que não se defende ele próprio apresentando queixa contra o Luis.
-- Giu, tu não tens de testemunhar em nenhum caso doutrem, tu tens de testemunhar em teu nome, tu és uma vítima.
-- Não não.
-- Ó Giu xau!
O pintor entra na ilha, ao fundo o Luis com a guitarra, o pintor caminha e tem a pedra no bolso, caminha para a sua porta e não olha para o Luis, o Luis não mostra movimento. Está quieto. O pintor entra em casa. Está descansado por si, mas irritado por não conseguir que o seu amigo Giuliani se defenda, como poderia ele ser testemunha do pintor se, depois, o Luis no redondo far-lhe-ia uma má cara e o Giu mudaria o testemunho, seria descredibilizado em plena sessão de tribunal e, à noite, o Luis dava cabo dele.
Por isso, o pintor está bem, mas o seu único amigo na vizinhança, o único do qual ele sente algum carinho de amizade, leva porrada e não há meio de o salvar. O meu amigo é doente e triste. A miséria é mais dele que minha mas eu sinto-a como minha.
Quanto ao Luis, neste momento a guerra está empatada a um. Ele insultou e marcou golo mas os pombos, ao ameaçarem que lhe enchiam o cabelo com diluente, fizeram com que ele se descuidasse e deixasse cair o telemóvel inteligente de cento e vinte euros ao chão, desfez-se em cacos. Um igual.
Hoje a ilha está calma e o herói do Stendhal, o Fabrício da Cartuxa de Parma está quase a evadir-se da Torre Farnese. Vou continuar a sua leitura.
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Claudio Mur

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