quinta-feira, 18 de junho de 2020

Temos guerra

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Aos vinte e poucos anos ironiza-se o papel de vítima dizendo que «quando se quer ter uma aventura [amorosa] mais vale dizer que somos donos do banco de portugal do que desempregados. Há nesta afirmação, a falta de dinheiro e a falta de amor. Quando não há dinheiro, provavelmente sofremos alguma carência: ou nos alimentamos mal ou nos vestimos mal ou habitamos um local mau. Em qualquer dos casos, sentimo-nos infelizes e em necessidade, as nossas preocupações começam a reduzir-se ao básico, e as nossas divagações e passeios começam a reduzir-se ao bairro, as pessoas começam a rarear, os contactos sociais começam por entropia a ser igualmente cada vez mais rasteiros e a mulher ou o amor começam a rarear, queres ver alguém, uma cara bonita e começas a não ver ninguém. E a carência começa a ser visível. Depois de seres vítima de uma falta de dinheiro e de falta de meios para o conseguir, começas a parecer um desgraçado. Ninguém te quer. Dá-te raiva: afinal tinha tudo e agora não tenho nada. Então começas a mentir a ti próprio, começas a contar aos poucos amigos que ainda vêm ver ao pardieiro, onde agora mora o comandante, e cujas obras se reduziram a tirar tudo fora e a desinfectar, e a pôr as aparelhagens lá dentro outra vez dormindo no meio das baratas com o teu novo filho, adoptado desde os gloriosos quatro mil gastos na fortaleza, e que dorme a teu lado, servem de almofada um ao outro, às vezes a festa envolve uísque e cola e a ressaca de ver o pintor a ler no terraço o seu Stendhal e a fumar a sua ganza que pode comprar com o dinheiro que ganhou por ser mão-de-obra de um corno real, este corne real ressacado por a antiga companhia o ter descartado uma companhia onde era oficial mete nojo e óstress quando era chamado a trabalhar como técnico de som em palco, era a sua função invadir o concerto a meio e dizer aos músicos que não lhe podiam estragar o concerto a ele, o óstress, que por uma luzinha falhar na mesa de mistura ia perguntar ao baterista que num momento sem solar tirava uma selfie pondo o carregador na tomada: ó sacanofa biche!, não desligues os fios das tomadas camone andersetande fodote já. o corno real gosta de ser bruto e há dias ressacava do pintor não lhe quer entrar em casa para ver a maravilhosa instalação de som: uma aparelhagem só com rádio na rfm e umas colunas pioners de arraial, uma aparelhagem para ouvir por uns auriculares de telemóvel, roubados ao filho adoptado, a pen de um concerto de uma banda que o faz chorar, ele diz que trabalhou com eles, ele há dias dizia para o filho: é preciso ir comprar um tacho já temos comida mas não temos tacho. Mas nenhum dos seus criados, que vivem na realidade à custa do dinheiro da mãe cona real dele e que às vezes aceitam levar um tabefe, lhe apeteceu ir aos chineses comprar um tacho e entre a fome e a ressaca gastou-se o dinheiro no táxi ida-e-volta à fortaleza. Agora o autoentitulado comandante corne real está fodido porque o pintor, que está a ler o seu livro e a fumar a sua ganza, o ignora por completo até põe nas orelhas os seus próprios auriculares do burrofone sintonizado na antena2, e aí o comandante diz:´ó pintor, não queres comer nada? um queijo da serra, um presunto, pão? E beber?, nada, uísque, cola, leite, água? anda aqui dentro. 
O pintor diz que está bem e não quer nada, ele fuma a broca até ao fim, fecha o livro, e diz à sua consciência: ora bamos lá ber o comandante e as suas baratas, vou ter de levar com ele. Levanta-se do terraço e entra em casa, na sala do comandante, andou a riscar as paredes em inspiração a um mestre surrealista de quem foi caseiro. É!, e não é tudo, também diz que já foi tasqueiro, hoteleiro, cozinheiro fuzileiro, comando e paraquedista e que esteve no ganistão e que matou o terrorista ao fazer de sniper, a mesa é um puff com um tampo de madeira, a um canto um sofá encontrado no lixo, uma televisão com descodificador mas sem carregador e as aparelhagens. Em cima da mesa, as garrafas e o caneco. Estão todos à espera que o pintor faça a sua ganza porque o comandante deve dinheiro ao fornecedor e desvia o que rapina mentindo à mãe para enterrar na fortaleza e no táxi, o comandante quer ganza e começa a falar dos músicos que consomem drogas: olha o Quim, olha o Toy, olha o Tony... 
E salta a tampa ao pintor: o quê? o Tony Carreira não se droga. Ele é um modelo para muitas mulhers, donas de casa e gajas da limpeza. 
O comandante, exaltado por haver alguém que o contradiz, rosna: o Tony snifa coca no meio dos concertos. E o pintor responde: Pois não parece. O comandante: eu também não. O pintor: Pois tu pareces mesmo um fumador de coca. O comandante: estás-me a chamar de drógado, rosna o comandante quase a ferver quase no ponto. O pintor diz: não, não te chamei drogado, disse que o Tony não tem aspecto de quem fuma e tu tens.
O comandante diz, pois eu hei-de vestir-me bem, barbear-me como o Tony, só não ponho gravata, a minha gravata é esta.
E vai à parede e retira o bibe azul do fato da marinha e põe-no ao pescoço: e tu aí não hás-de dizer que eu pareço um drógado.
O pintor pensou: há muito que a desgraça se adivinhava, este comandante é um verdadeiro merdas autoiludido, não há ninguém que lhe faça frente, preciso de escolher bem as palavras. O pintor diz: Se fizeres isso, vais enganar tão bem como o Tony. Bem vou-me embora, vou jantar.
-- Faz uma ganza, pede um dos criados do comandante ao pintor.
-- É, e não queres uma gaja na cama?, também arranjo.
-- É, diz o comandante, tu nem uma gaja para ti arranjas.
-- Olha corne real, tu nem consegues ver quando eu estou a falar brincadeira com o teu menino-de-mão, vou masé para casa, «parece que a última lady que aqui contigo dormiu se queixou da tua impotência» diz o pintor entredentes.
No dia seguinte, o Giuliani diz que o comandante se vingou nessa mesma noite no criado, deu-lhe dois socos e deixou-o a sangrar. Dentro do quarto, ouço-o a rosnar lá fora: esse panelereiro aerossol a dizer que o Tony anda a enganar as sopeiras, ele que apareça aqui fora e que passe à minha porta. 
Mentalmente, o pintor viu a linha desenhada pelo comandante no chão. Pensou: E tu Corno-Real, para saíres do teu pardieiro para qualquer coisa, para saíres à rua tens de passar debaixo da minha janela, quem sabe se os pombos não te dissolvem a cabeça com anacrosina ou diluente quando passares debaixo de mim.
Temos guerra.
As minhas desculpas ao Quim Barreiros, ao Toy e ao Tony Carreira
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Claudio Mur

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