sábado, 6 de fevereiro de 2021

O desenho não valia nada

 '

Rob pergunta se alguém está a ter visões, todos respondem negativamente. Então, como eu fui o que mais o acompanhou, pergunta-me se estou a ter visões, aceno que não.

Duma vez que comi cogumelos ao lado de Rob, ele estava sentado numa poltrona, olhei e ele pareceu suspenso, pareceu um daqueles papas majestáticos que tanto obcecaram Francis Bacon. Suspenso. Espécies de linhas brancas formavam uma espécie de nevoeiro, ou aura turva, uma nuvem onde talvez ele estivesse a desaparecer, suspendendo-o acima dos padrões geométricos do chão alcatifado. Rob olhava-me com a sua cara pedrada de ganza e, sorrindo sem compreender, perguntava-me o que se passava, are you ok, man?

Que dizer disto?, Bacon dissera que as drogas não o favoreciam ou não o influenciavam no seu trabalho, mas ele também disse que nunca fizera um desenho preparatório e, mais tarde, esta afirmação veio a ser posta em causa pela descoberta de «uns papeis».

Há trés ou quatro meses, eu próprio fizera um desenho que pensei vir a transformar num quadro e mostrei-o ao John, o meu colega de apartamento da altura, que olhou e perguntou se eu conhecia Henry Moore, eu disse que não e John disse que Henry Moore poderia ser a minha gestalt. Neste caso de eu alucinar um Rob papa, esta hipótese de gestalt não se punha porque, de facto, eu conhecia um pouco do trabalho do Francis Bacon.

Era eu um Bacon olhando uma alucinação, a minha tela grandiosa ou era apenas uma projecção do que a mente gostaria que o meu corpo fosse, um papa, um pintor ou o proprio Rob? Não sei, nessa noite o outro Rob vira um porco na cara do Sean.

Agora, na sala deste apartamento, o meu taparuére de cogumelos está no fim, os rapazes continuam a falar, um fala de mulheres mas fala de um modo algo brutal, machista: the bitches the bitches, sem respeito, não chego a perceber uma única frase, acordo em momentos aleatórios e ouço the bitches... the bitches... and so on and so on.

São horas de voltar. Restam dois deles após o rapaz, que mora ali, se ter ido deitar. Decidem apanhar um táxi para Bishopstown. Eu, entretanto antes de sair com eles, tenho que ir à casa de banho.

A porta fecha-se sozinha, olho para a sanita e toda a geometria me parece alterada, começo a mijar e o chão está cheio de minúsculas pintas de várias cores, reparo que elas se começam a mexer, a andar como se fossem pequenos vermes.

Rio-me, é mesmo verdade, está a acontecer, deixo de olhar, continuo a rir, mija depressa John.

A luz, neste momento, é desligada e eu sinto algum medo por ficar alucinando no escuro mas compreendo que é tempo de sair, eles desligaram a luz para sair de casa, eu tenho de sair deste medo para não ficar fechado dentro de uma casa estranha tendo alucinações.

Então, abro a porta e vejo que Rob é o último a sair, dizem-me que pensavam que eu já tinha saido e assim haviam desligado a luz.

Rob olha-me e assusta-se, pelo menos assim parece, não esperava que alguém saisse de um canto escuro. Hey wait for me ou qualquer outro grunhido e fecho a porta de casa atrás de mim.

Seguimos pelo corredor e Rob volta a olhar para trás como se assustado comigo, com o meu ser, o que verá ele em mim neste momento?, que alucinação?, não devo parecer a pessoa mais sã deste grupo. Recapitulando: não tomo banho há uma semana, não me alimento decentemente, estou sem casa ou vivo a maior parte do tempo em casa dos outros, tenho a barba comprida, a gabardine suja, esta uso-a todo o dia desde que a comprei por alturas do último Natal, carrego sempre a mesma mochila. A imagem de um ser assassino ou a de um vagabundo há muito que deixou de ser uma imagem, uma mentira, a psicofisiologia transparece na imagem, pelo menos é isso que me vem à cabeça ao devolver o olhar a Rob.

Eu estou sempre a falar de mim masé porque estou a viver, a conhecer quem eu sou e como comunico com quem estou, e é, às vezes, ao olhar para os outros e ver o modo como interagem comigo que eu descubro quem eu sou a cada momento, sum ergo cogito.

Uma vez, quando vinha pelo canal em direcção a casa, após o trabalho numa tarde de Inverno escuro, um homem aproximou-se de mim e disse-me, ou melhor, gritou repetindo e declarando que era do IRA, não lhe liguei muita importância e continuei a andar, quando cheguei a casa comentei com Evan e ele observou justamente que nunca alguém diria pertencer a uma sociedade secreta e considerada terrorista, seria deixar cair o disfarce e habilitar-se a ser preso. Talvez não passasse de um exibicionista com algumas paintes a mais que talvez estivesse a pedir uma moeda.

Outra vez, sonhei que caminhava a noite numa rua estreita com lojas no centro da cidade. Um homem com uma faca aparece e quer roubar-me. No meu sonho digo: kill me kill me what are you waiting for?, kill me. Ele, talvez impressionado com aquelas palavras, alivia a pressão e, então, retiro-lhe a faca, vejo medo nos seus olhos, seria tão fácil desfigurá-lo... deixo-o, continuo a andar e deito a faca ao rio Blackwater.

Outra vez, fiz um auto-retrato anatomicamente incorrecto e perguntei a Dan se ele reconhecia a personagem, ele disse não mas que o podia prender.

Nessa noite aprendi duas coisas importantes: ele poderia estar a mentir mas se eu tivesse a capacidade de desenhar correctamente a realidade, nunca ele me teria dito o que disse porque me reconheceria. Apesar de tudo, é capaz de corresponder à minha realidade; se tivesse mostrado a alguém que percebesse alguma coisa de arte, dir-me-ia provavelmente que a técnica daquele desenho lhe fazia lembrar este ou aquele pintor, ou então, diria que o desenho não valia nada.

 '


John Moore

Sem comentários:

Enviar um comentário