quarta-feira, 30 de junho de 2021

Os inimigos

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Estava eu de visita a uma loja de discos, onde às vezes um coleccionador de arte aparece, e disse eu ao dono da loja:

-- No Sábado passado e a caminho do salão de chá para ver se lá estava o Serafim, passei em frente à galeria e esta estava fechada, tinha um número de telefone colado na porta...

-- É, deve estar em Lisboa confinado...

-- Ele está em Lisboa?

-- Sei lá, ainda há bocado ao vir para cá, estava fechado o vendedor dos teus quadros.

-- Já não fala comigo há mais de um ano...

-- Não deve gostar de ti...

-- É, se calhar não, eu sei que há pessoas que não gostam de mim...

Estava a dizer isto e a folhear uma estante de discos e a pensar no que há quase dois anos e antes da pandemia dissera a Via Láctea, minha irmã de sangue, quando ela me veio visitar à ilha e almoçar o meu frango com arroz. Até essa altura, quando ela vinha levava-a ao café-restaurante da zona e ela pagava o nosso almoço conjunto, era a maneira que tinha de me agradar. Recusei posteriores almoços pagos porque durante eles o café enchia-se de mirones a perguntarem-se de onde poderia eu, um desarranjado da vida, conhecer tão formosa dona e mais, ser-lhe pago o almoço. Uma vez até me ofereceu «A chama» de Leo Cohen e todos invejaram não ser eu e não eles o destinatário do presente.

Ah, invejaram não ser eu mas não foi por não terem agora mais um livro para ler, invejaram mais o dinheiro gasto comigo, quanta cerveja, quantas pipocas não estalariam por trinta segundos no caneco se ela, em vez de lhe dar o livro nos desse a nós o valor do livro em numerário...

Sim, os mirones comiam-na com os olhos e eu pus-me a pensar no caso, decidi que a traria à ilha e retribuiria o valor dos almoços anteriores com um almoço para dois por mim cozinhado, fui até buscá-la a meio caminho da estação de metro, ela gostou do arroz e perguntou e eu respondi: « a galeria é como uma namorada, um romance de adolescentes, andas dias e dias, semanas e meses a gastar o teu latim, a ficares seco da garganta de tanto explicares a situação filosófica do ambiente de vida do pintor e o modo como o mundo mediado é transferido e expressado em cada nova filha ou tela pintada... tudo no intuito de caíres nas boas graças da dona namorada e ela te dar um sorriso, te incentivar a nunca desistires, a dares o melhor de ti e a fazeres umas alterações no último quadro e que em breve terás as tua exposição. E assim, o jovem namorado ou o pintor velho sai esperançado do encontro e seco e desejoso de um copo de água, uma altura em que o cigarro não ajuda e seca ainda mais, e vem para casa e diz que a prima Vera chegará, e ela chega, a exposição é feita e tu dás espectáculo, os quadros vendem-se todos em pouco tempo, a publicidade patrocinada leva o teu nome a dar lucro à namorada, ele já te tinha correspondido pagando-te previamente as obras, até ao dia em que surge o nome seguinte no cartaz, um novo namorado se anuncia, porque a galeria vive de novidades, carne fresca, e é assim que o casal de namorados se desfaz, o pintor teve o seu dia e gozou o que pode, comprou uns discos extra, quatro ou cinco livros para devorar após o jantar, fumou mais umas quantas brocas e desfez-se na obscuridade, e a namorada já não quer saber dele.»

Via Láctea ouve e confessa que nada percebe de bastidores do mundo artístico, eu digo-lhe que é como na literatura um putedo, safa-se quem anda a namoriscar alguém, se não fizeres a vida de ir a inaugurações, eventos e lançamentos, nem sequer sabem que tu existes, o pior é quando me perguntam se eu ainda vou à galeria, tenho quadros para vender mas essas pessoas preferem comprá-los na namorada porque ela lhes vende a obra pelo triplo do preço e as pessoas só dão valor ao big money, e eu sou peixe miúdo.

Estava a pensar nisto na loja e virei-me para o dono e disse:

-- Se calhar ele é meu inimigo, mas a nossa importância também se vê na qualidade dos nossos inimigos.

-- Importância... que é isso?

-- A importância é efémera, demora quinze minutos a fama, até que alguém grafitou: um dia seremos todos anónimos por quinze minutos. Bem... até à próxima

Saio da loja e dirijo-me para casa, caminhei com este calor para nada, vou ter de arranjar dinheiro de outra maneira, agora para piorar a tarde só faltava que o Zaine aparecesse bêbado à minha porta com o computador no saco às costas prontinho para me jurar que a palavra-passe está errada e que desde que voltou do hospital não a consegue introduzir.

-- Sabes ler? E escrever sabes? Olha, vou-te escrever a palavra-passe nesta folha A4, consegues ler?, ah já sei, não tens óculos, deitaste-te em cima deles, havias gozado com o Giuliani quanto eu te disse que era assim que ele fodia os óculos que lhe compravam... e tu fizeste o mesmo, no hospital fazem-se muitas promessas e muitos amigos... mas não disseste que o tipo dos Açores te ia pagar umas lentes bifocais?, poisé... não me voltes a aparecer bêbado aqui em casa, é que tásaver eu não sou a tua ama seca nem tenho que te rebocar rua acima quando sairmos de casa só porque tu dás um passo à frente e dois para trás e de costas, sujeito a partires a tua cabeça de poeta no granito da soleira da minha porta, óviste?

Tou fodido, o Giuliani morreu e morrendo o Giuliani morreu toda a gente, a comunidade do além migrou para o além, a ilha está entaipada, já ninguém lá mora, o meu ex-primo Ximenes vive agora na rua agarrado às pipocas e fugido do comandante que, suspeito de assaltar uma agência bancária e fugir sem máscara, suspeito de agredir uns azuis quando o mandaram parar quando conduzia sem seguro, suspeito de ter chamado nomes à patareca e avisado de que se aparecesse o filho da patareca o matava... o comandante, dizia eu, acabou quinze dias internado e é actualmente sem-abrigo mas que sa foda!,

O pior é o espólio literário do Giuliani acabar por ir parar ao contentor das obras quando a mãe vender o terreno da ilha para construção, a não ser o que os amigos conseguirem resgatar ou tiverem em sua posse, o Giuliani oferecia tudo. Morreu na miséria. Sabem lá esses poetas d’hoje, esses meninos copinhos de leite e ditos de afilhados do Saramago e outros prémios, esses que têm lucro ao escrever as banalidades que todos mandam ler como cartilha e plano nacional de leitura, o que é viver a palavra, tropeçar nela na rua e não poder fazer nada a não ser pegar logo na caneta e escrever na pedra do livro o sangue da sua existência!

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anónim@s do século xxiii

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Cais da Ribeira



«Cais da Ribeira»,
Aguarela A4 em papel 150grms,
2021 ZMB a partir de uma fotografia de
Memster Santosh ( Obzocky Photography)

sexta-feira, 25 de junho de 2021

domingo, 20 de junho de 2021

Traficar ossos para memória futura em Timbuktu: uma reminiscência

Galás é baixa e até já pode ser avó, a sua voz é uma referência. Dia munda tinha, para mim, uma expressão de afinidade, desenho-a mesmo avó de nariz partido, fazemos a asa um ao outro, súmula, crio combinações de fonemas, desdobro-me eu próprio em anagrama, compartimento o meu amor em identidades, em acrónimos para a escrever e para não escrever o seu nome a partir do momento em que a recusei e, no entanto, quando a ela voltei não posso deixar de pensar que ela se vingou nanando com o caubói, prefiro-a anónimo anagrama, não aos títulos de revista de tv, de jornal mas vim eu o meu ser e nós nas notícias?, houve um momento em que perdi o rasto à unidade de emissão com excesso de informação.

Nada mais foi é será igual, tudo muda: o modo como vejo o mundo e a minha percepção do modo como o mundo me vê a mim, começam-me a cair os dentes. No entanto, a minha técnica de engate consiste após a ruptura em descrever, como se um morto seja, a vida, o passado num misto de sorrisos velados e umas citações e um endeusamento cada vez maior, sempre para que a presa seguinte se sinta levada aos píncaros e condescenda comigo, me deixe roer-lhe a rata, lembro-me de duas ratas que não roo mas que recebem epitáfios tentando que elas percebam que há uma sequência cronológica infalível que me leva a ti, próxima presa tomada de espianto: tu és o meu apogeu, a combinação de nomes de todas elas, as datas, quando acontece o primeiro beijo e quando nasce, vês como tudo faz sentido?, não pode ser só uma coincidência, há um plano cósmico sabes?, tudo leva a que tu krida khalo icata ellen marguerite te queiras minha e me queiras teu, eu por ti deixava de fumar…

Talvez.

Então porque chumbas no teste do comprimido?

É surreal sem dúvida, entre um comprimido sem nome e uma injecção escolho pôr-me a pensar que galás afinal canta português [ah!, ouvir galás cantar em português, galás é uma psiquiatra de serviço no hotel dos condes, tem cabelo vermelho púrpura e calças justas e é alta como um abismo e dia munda agradece meu tabaco em espanhol], escolho pôr-me discutir a pronúncia da médica espanhola que faz a triagem psiquiátrica de manchester: agora a polícia contrata freelancers?, obrigada por su tabaco.

Eles respondem assim que terei de levar um shot no cu.

Eu, lembrando-me das famosas tatuagens no cu entro na personagem que vou desvelando, faço um grande chiqueiro teatral e, entre coacções várias e risos colossais, ponho-me a dizer que não quero, que não sei qual a finalidade deste comprimido e que não o tomo. Então, entre coacções várias e risos colossais, arreio as calças já com algum desprendimento para seguranças de várias qualidades e batas de várias cores não me darem afinal a pica, simulam apenas a injecção, não acho que tenha passado o teste do comprimido.

Existe ainda o teste da banheira do qual chumbo a primeira vez: põem-me a dormir mais uma noite na solitária, obtenho mais tarde uma vitória e a bata-mor que assistiu à esta torturazinha é [quiçá ilusão ambicionada] transferida, eis o início da mobilidade, eu vejo o olhar dele zangado ao entregar o cartão de sócio. Da segunda vez perante este teste com audiência constituída de batas brancas requisito um banho privado de chuveiro e admitem-me na sala de fumo: é aqui que troco ossos em timbuktu, assim parece, pela primeira vez com zaine. Techno desta vez creio que não seja, não me lembro dele ele lembra-se de mim, fica o osso para referência futura.

Tantos ossos há: desde o mineiro que, pedindo trocos, telefona para casa e nós ouvimos pelo seu desespero verbal as respostas negativas que recebe; desde o grande cesariny senhor danz que um dia assina o termo e volta no dia seguinte na hora de pequeno almoço quase de livre vontade apenas por não aturar a irmã; desde aquele mano de casaco de cabedal com pins que empresta o walkman com cassetes de metal construtivo, diz ele eu digo iiiieeeé; desde a vera malandreca que não me dá o número de telefone porque o marido não deixa e que está aqui devido aos berilaites; desde a rosa que anda sempre a pensar em comprar uma pistola e me diz para pôr de lado o senhor ventura do livro do torga e vir jogar umas copas; desde o bigode do antónio de quem dizem ter pegado fogo à casa e que, um lustro mais tarde, a minha falta de memória nas faces que passaram um dia pela minha vida tem a ilusão de imaginar ele vir a ser o meu mestre encadernador. Fizeram a folha ao bruno, pareceu-me vê-lo hoje na hora do almoço, perguntou-me se percebia de internet no telefone. Respondi com uma qualquer banalidade e ele concordou, só o reconheci debaixo do boné quando cheguei a casa e pesquisei …the feeling of being dead… devolveram-me cotard, a prosopagnosia, e em inglês …when you will have made him a body without organs… não consta que os caranguejos tenham amígdalas ou sentimentos.

Tantos tantos tantos cantar-vos a todos, justificar-vos, devolver-vos a g lória e no final…

Tantos tanto tantos e no final… há vários finais de admissão e eu, talvez apenas, precise de experimentar a matéria para melhor me escrever, há quem diga que chego algumas vezes ao pódio, vinte porcento do público dar-me-á [tantos?, talvez, ah! gloria] uma menção honrosa, o resultado: a sala iq do wc dos condes e voltar seis semanas depois à gravidez, err… quero dizer, à gravidade do ponto de partida, mais uma volta ao estádio, eu zmb sempre a renascer, eis o eterno retorno do erro. Apetece até citar cioran e o nosso inconveniente sempre que caio ao poço como o lobo enganado pela raposa, usando a lua como artifício, pensando que o seu brilho é um queijo lá bem no fundo para onde, agora e sempre, olho verde: a realidade da hiper ilusão e eu sou igualmente a raposa. Eu uma vez disse ao telefone para espantar alguém: eu sou todas as personagens.

Contam-me até na primeira pessoa, alguém que como eu se sente importante, que perde a amiga porque à saída do bar e, na altura de se dirigirem para o carro, ele lhe diz para esperar até ele abrir a porta e dar à chave: sabes o carro pode explodir, a mossad anda atrás de mim, eu não quero que tu sejas um dano colateral.

Também eu, uma vez ou outra em registo humorístico, percorri os passeios olhando para o topo dos edifícios à procura dos atiradores como se eu fosse um alvo subversivo em segredo, eu? Desde cedo que pareço importante pois ao português não pareço português mas sempre de fora, exilado ou gestor em missão de acompanhamento. Acho até que, às vezes, é bom nos desiludirmos de todas as cores e por muito que pense que sou alguém, que ponho e disponho do mundo… a verdade dura é que pouco mais sou do que um hobo, psicótico? Talvez mas não acredito que seja para sempre. Sei que coisas que vivo podem ser como tal encaradas e sei que tal me pode dar um rótulo mas não acredito que seja para sempre, irreversível nunca. Li no entanto philip k. dick dizendo que a psicose é um salto em frente que fracassou e o que eu mantenho é a certeza que pelo menos tentarei: amor, trabalho, conhecimento e a responsabilidade de se puder não roubar a tv da mãe, tanto melhor. Deixemo-la rezar, essa reza dá-lhe força, mãe de santo que você se salve por mim.

Ah: «se eu fosse e não fosse e fosse poderia respirar».

A anti-matéria aniquila-se

com a matéria que está à sua volta,

destruindo-se

e dando origem ao mistério da luz,

sensação

e emoção

em movi

ment

o.

E o que tens a dizer sobre este quadro, recordas-te que estamos a ouvir cheriecherie dos suicide?

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manuelle biezon

quinta-feira, 17 de junho de 2021

A Cervejeira das Fontaínhas

 


«A Cervejeira das Fontaínhas»
óleo sobre tela
70cm por 50cm
2021
ZMB

O 7 da camisola é o 7 do dragão Quaresma


terça-feira, 15 de junho de 2021

Descansa em paz, Júlio

 O amigo Giuliani dos meus textos, que na vida real era o poeta
Júlio Alberto Allen Vidal, faleceu.
Desde Outubro que já não era seu vizinho e portanto não sei pormenores em primeira mão.
Luis P. Costa, um realizador de cinema que era um dos amigos que mais o ajudavam, publicou no seu mural do face um obituário: «morreu de tristeza, na miséria e com um cancro no fígado»
Ele tinha hepatite C e estava no tratamento, mas sucumbiu.
O Júlio viveu desprezado pela sociedade, a sua poesia é a poesia de um homem do povo, talvez não fiquem na história as suas palavras, mas viverá para sempre na minha memória e na de todos os seus verdadeiros amigos:
Júlião bom coração, dava tudo o que tinha e ficava sempre sem nada.
Descansa em Paz. Se houver Céu irás para lá certamente.



domingo, 13 de junho de 2021

Café do Bruno



 «Café do Bruno»

aguarela tamanho A3 sobre papel Canson de 160grms

2021

ZMB

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Rolling the drum


 «Rolling the drum»

desenho a caneta bic (ball point pen), pau de grafite 

e marcador de preto permanente com ponta de 0.7mm

sobre papel de 185grms tamanho 65cm por 50cm

2021

ZMB


domingo, 6 de junho de 2021

O jornalista

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Nas prioridades do seu coração eu sou o jornalista: -- Não seja puxa-saco. Sempre a querer saber como eu consegui...
-- É, ponho sempre a boca no trombone mas é porque você me inspira eheheh
-- Eu devo ser padre, tenho o Zé sempre a ligar-me pra me contar as desgraças...
-- Tu és madre! Havia o imperador que te dava ouro e cerveja, agora tens o governador que faz a paz comprando-te um coelho...
-- Você sabe que eu não guardo pensamento, disse bem alto «pensa que me vai comprar com um coelho?» e ele olhou pra mim com umas trombas, minha nossa.
-- Fala-me do Insistente, é esse a próxima vítima?
-- Ué, eu bem lhe digo «você está brincando com o fogo, se o governador descobre põe você no olho da rua», mas lá está... comprou a minha água mineral, me deu dinheiro para um café...
-- Coitado dele, foi ao mecânico e depois foi e passou na inspecção, foi-te buscar no final da tua entrevista de emprego...
-- É, e agora o carro avariou, tem ido lavar os seus comboios de metro.
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anónim@s do século XXIII

sexta-feira, 4 de junho de 2021

terça-feira, 1 de junho de 2021

Crave

 ' e eu quero brincar às escondidas contigo e dar-te as minhas roupas e dizer que gosto dos teus sapatos e sentar-me nos degraus enquanto tu tomas banho e massajar o teu pescoço e beijar-te os pés e segurar na tua mão e ir comer uma refeição e não me importar se tu comes a minha comida e encontrar-me contigo no Rudy e falar sobre o dia e passar à máquina as tuas cartas e carregar as tuas caixas e rir da tua paranóia e dar-te cassetes que tu não ouves e ver filmes óptimos, ver filmes horríveis e queixar-me da rádio e tirar-te fotografias a dormir e levantar-me para te ir buscar café e brioches e folhados e ir ao Florent beber café à meia-noite e tu a roubares-me os cigarros e a nunca conseguir achar um fósforo e falar-te sobre o programa de televisão que vi na noite anterior e levar-te ao oftalmologista e não rir das tuas piadas e querer-te de manhã mas deixar-te dormir um bocado e beijar-te as costas e tocar na tua pele e dizer quanto gosto do teu cabelo dos teus olhos dos teus lábios do teu pescoço dos teus peitos do teu rabo do teu '


Sarah Kane, em «Falta»



A droga da nação

Saio de casa com a máscara na garganta porque tenho de percorrer uma subida de cem metros até ao primeiro, e geralmente único, cimbalino do dia. Se colocar correctamente a máscara, abafo na subida e posso eventualmente mijar-me nas calças. Precavido desta reacção fisiológica, nunca saio de casa sem usar a casa-de-banho.

Chego ao passeio em frente ao café e paro um pouco, para regularizar a respiração. Vejo que lá dentro só estão dois clientes e uma empregada na cozinha. Na rua, vejo aproximar-se o outro empregado. Quando está para entrar no café, saudamo-nos à distância. 

Ponho a máscara e entro. Cumprimento o «campiom do jogo da moedinha» que está a ler o jenê. Dirijo-me ao balcão. O empregado diz: -- Tiro-te já o café, amigo.

-- Sem problema.

Na televisão, passa uma reportagem da selecção de futebol. Quando ele me está a tirar o café, eu pergunto-lhe: -- Quando é o Europeu, é agora este mês?

-- Sim, diz ele, é lá para 14 ou 16. É quando joga a selecção. Mas ainda ontem jogaram os sub-21, grande jogo, e eu não vi!

-- Eu ouvi na rádio!

-- Mas...

-- Sim, eu não vejo televisão nem tenho leitor -- e aqui olho para a televisão do café -- quero dizer, não tenho receptor, não tenho aparelho de tevê. Eu acho que a televisão é uma droga.

Ele parece surpreso com a palavra «droga» e nada diz, e eu sinto-me levado a completar a minha afirmação: -- As pessoas ficam malucas a ver televisão.

-- É... ficam viciadas...

Ele serve-me o café, recolhe as três moedas de vinte e eu pego no pires e venho sentar-me nma mesa. Tomo o café e vejo a televisão. Está a dar um conferência de imprensa numa inauguração em Sines, vê-se o ministro e vê-se a plateia. O empregado que serve o Lipe que acabou de entrar, vira-se para mim ao longe e diz:

-- Droga? São estes políticos!

Reparo que ele diz o que sente, o que lhe vai na alma, e eu sorrio, ele repete «droga? São estes políticos!», eu volto a sorrir, olho para a tevê, pego no pires e levo-o da mesa para o balcão e venho fumar o meu paivante para a rua. 

Ele sai levando o assador de sardinhas para ir deitar as cinzas ao contentor. Volta, passa por mim e nada diz. Eu quase que sinto que ele ficou ofendido com as minhas palavras. Chamei drogados a todos os que vêem televisão. Quase que se me gera a vontade de lhe explicar o porquê da minha frase, que até nem é minha mas com a qual concordo, sinto vontade de lhe falar de quando eu próprio via televisão e falava com ela: quando o Orelhas dos Santos mandava um bitaite eu respondia, quando a Márcia dizia uma frase bonita, eu olhava-lhe para o decote e respondia-lhe com um sorrisinho e até parecia que ela o sentia, e eu sentia que ela, dentro do receptor de televisão, se esforçava por não se desmanchar a rir com as minhas tentativas de sedução.

Mas se eu dissesse tudo isto ao empregado do café que ficou fodido por eu chamar drógado aos consumidores de televisão, ele passaria a olhar para mim e tratar-me como um maluco.