terça-feira, 1 de junho de 2021

A droga da nação

Saio de casa com a máscara na garganta porque tenho de percorrer uma subida de cem metros até ao primeiro, e geralmente único, cimbalino do dia. Se colocar correctamente a máscara, abafo na subida e posso eventualmente mijar-me nas calças. Precavido desta reacção fisiológica, nunca saio de casa sem usar a casa-de-banho.

Chego ao passeio em frente ao café e paro um pouco, para regularizar a respiração. Vejo que lá dentro só estão dois clientes e uma empregada na cozinha. Na rua, vejo aproximar-se o outro empregado. Quando está para entrar no café, saudamo-nos à distância. 

Ponho a máscara e entro. Cumprimento o «campiom do jogo da moedinha» que está a ler o jenê. Dirijo-me ao balcão. O empregado diz: -- Tiro-te já o café, amigo.

-- Sem problema.

Na televisão, passa uma reportagem da selecção de futebol. Quando ele me está a tirar o café, eu pergunto-lhe: -- Quando é o Europeu, é agora este mês?

-- Sim, diz ele, é lá para 14 ou 16. É quando joga a selecção. Mas ainda ontem jogaram os sub-21, grande jogo, e eu não vi!

-- Eu ouvi na rádio!

-- Mas...

-- Sim, eu não vejo televisão nem tenho leitor -- e aqui olho para a televisão do café -- quero dizer, não tenho receptor, não tenho aparelho de tevê. Eu acho que a televisão é uma droga.

Ele parece surpreso com a palavra «droga» e nada diz, e eu sinto-me levado a completar a minha afirmação: -- As pessoas ficam malucas a ver televisão.

-- É... ficam viciadas...

Ele serve-me o café, recolhe as três moedas de vinte e eu pego no pires e venho sentar-me nma mesa. Tomo o café e vejo a televisão. Está a dar um conferência de imprensa numa inauguração em Sines, vê-se o ministro e vê-se a plateia. O empregado que serve o Lipe que acabou de entrar, vira-se para mim ao longe e diz:

-- Droga? São estes políticos!

Reparo que ele diz o que sente, o que lhe vai na alma, e eu sorrio, ele repete «droga? São estes políticos!», eu volto a sorrir, olho para a tevê, pego no pires e levo-o da mesa para o balcão e venho fumar o meu paivante para a rua. 

Ele sai levando o assador de sardinhas para ir deitar as cinzas ao contentor. Volta, passa por mim e nada diz. Eu quase que sinto que ele ficou ofendido com as minhas palavras. Chamei drogados a todos os que vêem televisão. Quase que se me gera a vontade de lhe explicar o porquê da minha frase, que até nem é minha mas com a qual concordo, sinto vontade de lhe falar de quando eu próprio via televisão e falava com ela: quando o Orelhas dos Santos mandava um bitaite eu respondia, quando a Márcia dizia uma frase bonita, eu olhava-lhe para o decote e respondia-lhe com um sorrisinho e até parecia que ela o sentia, e eu sentia que ela, dentro do receptor de televisão, se esforçava por não se desmanchar a rir com as minhas tentativas de sedução.

Mas se eu dissesse tudo isto ao empregado do café que ficou fodido por eu chamar drógado aos consumidores de televisão, ele passaria a olhar para mim e tratar-me como um maluco.


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