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Dizia ela no outro dia no caminho de volta à estação do metro:
-- Sabe o que foi que ele me disse? Disse bem assim: «ela pensa que eu não sei por onde ela anda e com quem vai!»
-- Mas ele ao dizer isso, estava só a fazer blufe, a meter medo, ele não sabe verdadeiramente, e se o soubesse não reagiria assim, com tanta calma e desprezo...
-- Se afasta de mim agora, desce e segue em frente...
Eu escuto, olho para o lado contrário, vejo um gajo aproximando-se da entrada do metro, e desço a escadaria da estação, no final olho para trás, ela vem
a descer, espero por ela e pergunto:
-- Atão, o gajo viu-nos?
-- Não, era amigo do Acá, pedi-lhe um cigarro, ele não deu, disse que ainda ia tomar café antes de ir embora.
-- É melhor eu ir embora, o metro é só daqui a oito minutos.
-- Sempre o mesmo, me deixando sozinha à espera.
-- É no teu interesse.
Hoje, de manhã, ela saía novamente do metro, mas noutra estação, eu vi que ela saía e caminhei à frente sem olhar, ela vi-me e deu-me uma palmada
no braço, disse:
-- Segue em frente, o insistente vem ali atrás...
Eu não olhei e segui, subi a escada rolante para a rua, andei mais devagar, ela chamou--me, eu olhei, ela vinha e não me pareceu ver o insistente, ela disse para eu esperar
por ela:
-- Você parece o pilotão, sabe que no Brasil, há um dia em que há uma parada com carro militar e soldado marchando, há sempre um que vai à frente,
é o pilotão, é você que não espera por mim.
-- Ele já não vem ali?
-- Não.
-- Não vinhas a falar com ele no metro?
-- Não, ele vinha com o filho.
-- Olha, e como correu, naquele dia?
-- O amigo do Acá chegou não sei como primeiro que eu, e mal eu cheguei à esplanada o Acá disse bem alto à frente de toda a gente, me humilhou, estavam
os amigos dele, as amigas, ele bebendo cerveja, o insistente bebendo café, eu fui para casa com as palavras dele zoando dentro da minha cabeça: «desapareça da minha vida tire as suas coisas de minha
casa»
-- O gajo até deve ter pegado um táxi, estes chibos não olham a despesas.
-- Pois, eu quero que você escreva e passe para uma pen, o relatório do que eu escrevi, sobre o que ele me faz, é abuso, é violência doméstica psicológica.
-- Está bem.
-- Que é para eu depois ir à polícia. Agora, eu queria uma coisa, sabe onde eu posso pôr uma película no meu celular?
-- Sim, sei, há ali um sítio barato.
-- Mas agora as coisas estão mais calmas, eu lhe escrevi uma carta dizendo tudo o que ele me tem feito passar e disse que ia na polícia, e ele leu, saiu de trombas, foi comprar
pão, foi ao talho, grelhou três bifes para mim.
-- Sim, tentou comprar a paz, e ele sabe que tem de ter cuidado, não foste tu que disseste que ele foi chamado na Segurança Social, ela lá o deve ter avisado, até
já foste à polícia e aos bombeiros e que te disseram eles?, escrever tudo.
-- Sim, você passa o que está no caderno para a pen, imprime, e depois eu venho cá e levo à polícia para lá eles lerem.
-- Sim. Já reparaste no poder da palavra?, na importância de saber ler e escrever e expressar um sentimento?, a palavra, a caneta é uma arma, não faz sangue mas
leva as pessoas a agir, dá esperança, vê que tu escreveste uma carta a ele, disseste o que sentias, disseste a tua verdade, soubeste escrevê-lo e ele leu, e quis fazer logo a paz, essa era uma carta
que até eu queria ler...
-- Ele rasgou. Agora me explica: porque é quando eu venho você está alegre e quando eu vou você fica de tromba?
Eu sorrio, sei que faço assim porque me preocupo com os seus casos e fico pensativo pensando em maneiras de lhe resolver os problemas, digo-lhe:
-- Eu gosto de você, mas você não acredita, sugiro que o seu pensamento do dia seja hoje este: «pensar no que disse o Ru.»
-- Ah tábem...
-- Sim, pensa na palavra, no poder de expressar um pensamento. Às vezes, um escritor vende centenas de livros, ganha milhonas de dinheiro e ninguém o lê...
-- Ora não lê...
-- Não lê não, a gente compra e coloca na prateleira, eu ainda tenho livros que há anos não li, e tu foste cirúrgica, é esse o papel da palavra,
tu escreveste a tua verdade e atingiste o alvo, mudaste a tua situação perante ele, ganhaste a batalha.
-- Cessar fogo.
Despedimo-nos depois de passarmos na loja de telemóveis, na rua que dá acesso à estação do metro e eu venho para casa, aqueço no microondas o almoço,
tomo café, vejo as novidades do mundo nos jornais online, descanso meia-hora e começo a transcrever o caderno de Raíssa, segue em baixo.
«Relatório
03 de Outubro
O Acá inventou de ficar de tromba para mim, hoje, sem eu fazer nada, eu já estou cansada disto tudo, ele sai, não dá satisfação e depois quer que
eu fique satisfeita
04 de Outubro
Hoje ele só falou comigo à noite, veio com um pretexto falando de uma camisa que eu dei a ele
05 de Outubro
Mais uma discussão só porque eu lhe perguntei: se ele ia à rua que passasse na Tatiana para comprar o pão, ele começou a me gritar e falou que já
estava farto, eu só queria que Deus tivesse misericórdia de mim e me arranjasse um trabalho para eu ir embora daqui, até lá vou aguentando as humilhações, de uma maneira ou de outra
eu tenho de dar um jeito na minha vida. Às vezes, não me apetece beber mas sou obrigada para esquecer tudo o que estou passando. Depois de me separar a minha vida virou um inferno, só tristeza e humilhação,
quando eu penso que está tudo bem volta tudo novamente: as discussões. Eu aqui não tenho paz, só tristeza. Depois, voltar a Portugal foi o meu maior erro, não foi por falta de aviso mas eu
ainda tenho fé de que vou ser muito feliz mesmo com espinho ou pedra no meu caminho, sei que Deus não me abandonou, eu vou vencer, e eu sou uma guerreira porque eu acredito em Deus
o meu pai tarda mas não falha, por isso não desisto de lutar para ser feliz, Deus só dá a cruz a quem a pode carregar, se hoje estou passando por tudo isto ele
sabe o que está fazendo, se eu venci dois cancros é porque ele tem um propósito para a minha vida, só basta esperar, a minha vitória mais cedo ou mais vai chegar, posso perder tudo na minha
vida mas não perco a fé no meu pai que é Deus, vou viver um dia de cada vez, esperar pelo meu pai, meu visto que ele nunca me abandonou, mas também aprendi uma coisa: algumas pessoas gostam de pisar
nos que não têm nada, gostam de humilhar e depois dizem que são humildes. E vêm com pedidos de desculpa e como se nada tivesse acontecido, e quem sai magoado finge que esqueceu mas, no fundo, é
mesmo uma lição de vida para quem passa por tanta humilhação, mas nós não esquecemos, só fingimos que esquecemos, é como o ditado: quem dá esquece quem apanha
se lembra. Quando eu conheci o Acá, tudo era flores, agora se tornou espinho, eu às vezes tento sorrir para não chorar na frente dele e das outras pessoas, mas um dia tenho fé que vou voltar para
a minha terra e para a minha família e esquecer tudo que passei aqui em Portugal e um dia depois se voltar a Portugal só se for para passeio, porque eu amo Portugal de coração, como é duro
viver no país quando não tem ninguém por você, não trabalho, é muito triste ir atrás de um emprego e só levar um não, eu sinto tanta falta da minha família
e me vejo presa no país sem poder voltar para perto de quem me ama de verdade
07 de Outubro
O Acá tomou um porre e falou que eu era um monstro e que não me queria mais e que eu desaparecesse da sua vida, ele me magoou muito, eu preferiria que ele me desse um tapa
na cara, estou muito triste com ele, este é o meu sofrimento aqui em Portugal
11 de Outubro
Eu não presto, ele também falou que eu era ordinária, manda-me sempre ir embora, diz que sou uma mentirosa, eu acho que para m bom entendedor meia palavra basta, mas
a minha palavra é o silêncio
21 de Maio
mais uma briga, eu não posso estar com ninguém, não posso ter amigos, eu antes de conhecer ele não tinha de tomar remédio e agora tomo
na Sexta-feira saí para tomar uma cervejinha e só cheguei às três da manhã porque já não aguento mais este cativeiro, ele diz que eu tenho
amante, que me drogo, ele fica fazendo jogo psicológico, diz que eu não faço nada, também falou que os amigos dele mandaram ele jogar as minhas coisas no lixo, ele falou que se eu fosse um homem
ele quebraria a minha cara. Eu não posso deixar ele comandar a minha vida assim, ele quer mandar nas roupas que eu visto e quando eu recebia o rendimento mínimo eu pagava gás, comprava comida para pôr
dentro de casa e nós comermos
19 de Junho
mais uma briga entre eu e o Acá, já não aguento mais, sou tão infeliz, só gostaria que acabasse este sofrimento que estou passando, só queria que
Deus me escutasse, mesmo com esta tempestade que eu estou passando, eu coloco Deus à frente de tudo, ele falou que os amigos dele mandaram jogar as minhas coisas no lixo
05 de Julho
Mãe, hoje mais uma briga, estou farta mãe, porque é a vida tão madrasta comigo?, eu não mereço, e porque tenho de pagar um preço tão
alto, mãe?, eu queria que a minha vida acabasse porque eu já não aguento mais, mas nunca vou perder minha fé em Deus, quem me faz mal eu entrego, porque se Deus é por nós quem será
contra nós, às vezes sou tão estúpida, homem que me humilha, que me tortura»
Diz-me ela hoje que ele afinal não rasgou a carta: «ele me perguntou se era uma carta de amor, o que ele rasgou foi outro papel, eu vi, ele pôs as duas folhas lado a lado e quer pôr moldura na parede, me deu hoje dinheiro para o autocarro e para a comida da minha filha Pandora.»
Que bom, a cobra Pandora não passará fome de ratos descongelados, a mãe com a carta elevada a quadro de arte ganhou igualmente janta e cigarros por alguns mais dias, pelo menos até à próxima briga.
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anónim@s do século XXIII