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A norte da ria, timidamente metida para o interior, achava-se uma pequena e isolada formação montanhosa a que os habitantes locais apelidavam de Montures. "Assim foi: Deus meteu o dedo salgado num pedaço de nenhures, remexeu, e ali fez arrebitar um espinho montuoso -- Montures". Com pedra a fazer lembrar granito, não o sendo, algo mais consentâneo com a geologia e clima da ria, e coberta de espessa vegetação. Despontando da lezíria sem arbítrio, a irregularidade, um cravo numa cara linda. Desde sempre cenário de histórias e lugar de refúgio para as gentes silvanas, salvatério fácil para quem o procurasse ou para ele fosse empurrado. Dizia-se, por exemplo, que os órfãos da região iam todos lá parar, estabelecendo comunidade -- hipótese meio descabeçada está visto, pois nem haveria espaço para tanto, nem as crianças fundam cidades quando reúnem. No que nos interessa, foi lá efectivamente que São João Arrieiro foi parar quando a vida se lhe desgovernou. São João que colhia a urina das suas cavalgaduras em potes, gesticulava um simulacro de benção -- não se atrevia a mais --, e dava-a depois a quem lha pedia, aos pobres, sofredores, doentes prestes a expirar, sedentos do espírito; aos mais e menos necessitados, por igual. Até que, num dia de Inverno, saiu com os animais à conta do ofício e nunca mais ninguém soube dele. E isso deixou as pessoas a pensarem, e o pensamento das pessoas não foi bom para a memória do santo
ele que nada dava e tudo vendia, cabotino que fez da vida fartança, usurou com a saúde alheia, fez como se o sangue de Cristo se pudesse confundir com mijo, trocou raíz de mandrágora por dentes de criança e humores ainda castos, falava a língua das bestas e com palavras mansas beijou muitas partes vergonhosas, quer humanas quer animais, além dos doze filtros que preparou e com os quais seduziu turmas inteiras de mulheres, aliou-se ao Esgana-Cães num surto infame, infame, infame ainda hoje, teve escolta conhecida de pássaros negros que mais pareciam as fúrias, ferozes e malignos, e com o compasso do pé coberto de cerdas atraiu répteis, insectos e pequenos animais domésticos, apinhados para seu exclusivo repasto, maquinou indolente com uma larga hoste de divindades, deitou mão à carranca demoníaca que lhe conferiu salvo-conduto entre os dois mundos, olhou de frente o vazio sideral, tingiu a ria de sangue e fê-la confluir com as torrentes do Estige e do Aqueronte, nessa mistura gerando monstros e quimeras nunca vistas, nem sequer do lado de lá. E quando interrogado acerca da própria identidade, repetidamente respondeu em dissonância com o nome que recebeu por graça do baptismo: "o meu nome é soldado, porque sou apenas um"
ora mateiro, ora fascista, São João recolheu pois ao serro selvagem, ao bosque habitado pelas estações. Ali chegado, tirou arneses e varais aos jumentos que o acompanhavam e deixou-os à sua sorte. Se o fossem procurar, dariam com ele deitado contra a parede dum cabeço, famélico e levantino. Com os joelhos encolhidos, igual ao boi merceano. Se não o encontrassem, diriam qe o desaparecido se fundira às árvores, suas feições tornadas indistintas pela amálgama.
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páginas 69 - 70
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Esménio
edição Flop, 2018
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