quarta-feira, 22 de setembro de 2021

I am air

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A mim, às vezes, apetece-me invocar o princípio da reciprocidade e internar compulsivamente todos os chulos e todas as bruxas que me levaram ao suicídio e ao desaparecimento da lista de vivos. Quando morrer de vez hei-de morrer casmurro de velhice.

No fundo facho gera facho, um insulto absurdo e autoritário gera respostas absurdas e autoritárias. Olho por olho dente por dente. O mundo é uma selva. Steal while you may, bad poetry here inside: só te salvando me poderei salvar e deixar de me considerar uma vítima e esquecer o herói… peço-te meu filho, faz-me as perguntas que teu avô nunca me deu vontade de lhe fazer, para quê mais um desgraçado como eu no mundo?

Quase que apetece ser absoluto e escrever: irmãos malucos de todo o mundo calai o vosso segredo, façam os psiquiatras trabalhar, façam com que eles se interessem pelo que vocês sentem. No entanto, a realidade em que caio, em que caí, diz-me para escrever: a tua cabeça não aguentará tanto sentimento, ela vai explodir. E como se fosse um missionário resigno-me a escrever: sede sinceros, se tiverem de chorar, se tiverem de amaldiçoar, se tiverem de vomitar, se tiverem façam-no, libertem-se do vosso segredo. Eu não sei qual a solução. Não há solução. Apenas a sensação de doom para sempre. Se usares metáforas eles dirão que és delirante. Se usares muitas vezes o pronome «eles» numa frase ou numa pergunta eles dirão que és paranóico. Eles farão o diagnóstico e este será a pedra que o mundo te atirará, será a cruz que carregarás, será o teu fígado de Prometeu.

No entanto, digo-te que ainda me falta encontrar a tua mãe.

Uma das tuas avós adoptadas, a cigana cidália moreira, canta que a saudade se cansou de esperar por mim, nunca a vi nem fumei com ela mas até a imagino ao lado das musas em fragmentos góticos dizendo que não sabe o que dizem os meus olhos quando «trabalho» à noite no lado este da cidade vermelha, perto de uma mansarda e, com a companhia da companheira do vento cantando, vejo umas quantas janelas com luzes acesas, acho interessante e no dia seguinte volto, na rua do arménia as fadas conversam alegremente à janela enquanto dão pão às pombas, anita lane, diamanda galás e lydia lunch conversam à luz de pequenas velas vermelhas, observam a rua e para elas serei talvez um pivete de dez anos tentando dar o seu primeiro golpe ou serei talvez aquele primo longínquo que mora em bilbau com o céu em névoa,

digo-te, meu filho, que os poucos candeeiros reflectem uma luz amarelecida nas grandes tílias e carvalhos que formam o boulevard, aparece até a voz de uma menina de sete anos talvez, talvez convidada dos cranioclast a gritar «like a propeller running» até à exaustão, vem sua mãe e diz «dorme enquanto podes my dear», esta mãe é nem mais que katherine blake e eu arrepio-me, I am very lazy in love, dorme menino dorme,

sabes, meu filho, que acordo no dia seguinte no cemitério inaugurado recentemente com a morte do prefeito mas posso também ter sido acordado por um pontapé de um samaritano na porta traseira de uma igreja em paris, acordo com a voz dessa diaba perguntando-me as horas, recordo que tive a oportunidade de iluminar mais um professor e, usando o relógio, verifico a descarga da tensão sexual reprimida, ele dando-me aulas de cinema quando eu ainda tinha dinheiro para investir, penso que ele acabou por me compreender e respeitosamente se afastar, dirijo-me para casa no fim da noite de delírio e pego na minha lata de chocolate em pó. Ligo a rádio num programa com outras músicas de título «jesus almost got me»,

é aí, meu filho, que descubro que «tua mãe» morre supostamente em passeio de bicicleta e me dá um «irmão de sangue», um dos muitos que estão aqui comigo nesta sala de fumo, aliás eu até penso que, para melhor me escrever, levo a autoridade a internar-me mas isso é apenas a ilusão de me pensar ao leme,

sabes, meu filho às vezes, a gente até provoca pensando que nos vão respeitar depois disso e que vamos ser quem toda a gente lambe as botas a…

só para ser, sabes?,

viver o bilhar dos livros é ocupação para tardes de melancolia, viver a eternidade do dia, viver a noite e se possível acompanhado… é esse o falhanço que tu nunca verás,

eu rejeito pôr-te no mundo e pores-te a pensar que teu pai está sempre ausente na doença, que tua mãe sofre… eu não tenho vontade de tal sofisma.

A verdade: não participo da tua fecundação porque não te quero junkie como eu ainda que a tentar salvar o progenitor.

Isso ou mudar de nome, invento-te mesmo um nome que truncado soa japonês,

tem tudo a ver com ciclismo mas agora vou telefonar à tua avó, é dia da mãe, o meu primeiro amor, a primeira juíza final,

não te farei passar pelo mesmo, os tios, soldados ou não, foram morrendo.

Tu perguntas: pai, é a tua vida um artifício, uma dissimulação?

Não. Só aquela que escrevo e o modo como transcrevo a minha realidade,

o teu pai na vida real é do mais humilde, do mais simples que há-de haver, sempre explorado e nunca se sentindo bem ao explicar,

o teu pai é do mais humilde e, às vezes, até parece absurdo, sabes?,

de só hoje ter reparado que o gasoline man do trio suiço the young gods poderia ser a continuação do trabalho daqueles trio de tios velhinhos do texas com cavagnacs, óculos e guitarras em forma de zz top just outside la grange procurando companheiras do vento,

sabes, meu filho, que na verdade podias ter tido uma mãe na vida real

e o teu próprio ser existir em osso, carne e sangue na vida real.

Não contraí sífilis mas pensei-me tão eficiente a secar-te no umbigo dela que então duvidei.

Fiz os testes todos menos o de fertilidade, esse factor de psicose resolve-se agora, quando acontece, com protecção.

Imaginei mesmo a minha psicose saindo de um aborto não-real. Nunca fui informado se…

Não há nenhuma mãe que te mereça. I am not here and I am not there I am air.

É-me preciso conhecer esta fraternidade de uma cabeça em pedaços, há muito tipo de poetas mas sinto orgulho hoje de poder fumar um charro com um poeta da obra e, entre a partilha de eternidades sónicas e ovnis enevoados no youtube, aludir em conversação a este relato antes de me deitar e fumar o último porro… transcrevo então, meu filho ouve este penúltimo relato já nostálgico rejeitando as últimas musas e já farto do masoquismo platónico quando se começa a sentir que, de facto, perto daquele limiar que, por convenção, se chama de «os quarenta», mas que pode ser antes, se começa a comentar a vida que antes se viveu, acho que houve até um alemão que o escreveu, um tal de talvez «chopenaure», perdoem o meu ubuntu cof cof:

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manuelle biezon

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