segunda-feira, 9 de maio de 2022

A dimensão política e filosófica da questão laboral

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Viva Rui,
aqui Ru.
Falávamos no outro dia sobre trabalho, disseste que se pudesses largavas o emprego, se tivesses garantido um mínimo que te permitisse viver confortável, eu disse: sim, os salários intermédios não foram aumentados durante estes anos, apenas os salários mínimos os foram, hoje em dia só pode viver bem se entrarem dois salários em casa (como que a dizer: um paga a renda e o outro a despesa dos filhos). Disse tudo isto ou não disse nada, pensei-o e, como por ilusão telepática o pensei ter transmitido, não o terei talvez verbalizado com clareza, terei antes falado de mim, de me ter assumido como escravo voluntário, terei talvez dito que estou reformado e que nem devia trabalhar, mas que antes vivia num quarto mas precisava de um subsídio da minha mãe para a renda, e olha... agora, quase sete ou oito meses depois, continuo no mesmo trabalho e voltei para casa dos meus pais, logo já não pago renda, [dou voluntariamente uma pequena contribuição mensal à minha mãe como tributo por todos os anos em que ela me ajudou] e tenho dinheiro para livros e discos, sou um escravo voluntário, trabalho muitas horas e ganho pouco mas não me importo, como consigo descansar durante a noite não serão assim tantas horas de trabalho mas tempo no local de trabalho. De qualquer modo, sinto-me útil, os patrões gostam de mim, as minhas colegas de trabalho gostam de mim, os hóspedes também, estou bem lá.
O que tu não sabes, Rui, é o absurdo do meu trabalho: agora que voltei para casa do meu pai passei a ter poucas despesas fixas e a conta bancária aumenta porque eu não gasto tudo o que ganho e como não terei descendentes não quero deixar o dinheiro para o Estado ou levá-lo para a cova, urge estourá-lo!, podia estourá-lo numa renda de apartamento mas isso iria obrigar-me a trabalhar para sempre e viver para pagar o apartamento, logo já não iria ser um escravo voluntário e passaria a ser um escravo por necessidade. Terás de concordar que não precisar de pagar renda é uma mais valia que deveria estar acessível a qualquer cidadão. Em casa do meu pai usufruo de isenção de renda e se numa futura herança a casa de meu pai ficar para mim também aí não pagarei renda, apenas o imi ou, quem sabe. até terei isenção de imi, ou seja, após anos em quartos de despejo agora sinto-me garantido no que diz respeito a ao direito básico de habitação, e, por esta ordem de ideias, eu SÓ trabalho porque quero e não porque necessito. Logo sou mais livre do que a maior parte dos cidadãos que são escravos por necessidade.
Pensa comigo agora: eu trabalho e engordo a conta bancária e isso permitir-me-á poupar para uma máquina fotográfica na gama acima dos trezentos euros, para uma nova prótese dentária e para um futuro aperto em que nada corra bem e eu me veja desalojado de novo.
Mas o absurdo de que falo em cima é apenas económico. Falta falar na dimensão política e filosófica da questão laboral, foi o que eu finalmente vi com clareza este fim de semana tanto em casa dos meus pais como no trabalho: 
Se eu trabalhar o meu pai sente-se meu amigo, sente que o filho é boa pessoa e que está no bom caminho. É assim que neste momento e trilhando o bom caminho de meu pai eu me sinto livre e sinto que ninguém nem mesmo o meu pai manda em mim, converso com ele e ele conversa comigo e vivemos num idílio de pai com filho, galo e garnizé cada um no seu poleiro respeitando o outro. Felizes para sempre e o meu problema de habitação garantido e sem intromissões familiares na minha vida, apenas conselhos e não ordens, convivência feliz, diplomacia.
Se eu não trabalhar, o meu pai começa a ficar nervoso e a tentar controlar-me e a pensar que eu estou a ficar doente por ter voltado à ("tu sabes, filho, porque adoeceste...") droga. Guerra.

Conclusão, meu amigo Rui, eu trabalho para poder fumar o meu charro no meu anexo sem ninguém ter nada com isso. 
Agora um pouco de anedota linguística para cimentar o absurdo com um hilário: 
«Eça é quié'Essa! E esta hein? lol ou lola»

Saudações literárias.
Ru
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Claudio Mur

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