Há duas horas que me estão a chegar frases ao cérebro e não é qualquer efeito do thc porque evoluo a passos largos para deixar de ser um fumador, até a nem sentir vontade ah heresia de Jah, estou farto de aturar a Hermínia e as irmãs e até os primos, frases que chegam e urgem comigo para que eu pegue na caneta e as escrevinhe, frases repetidas em eternas variações e permutações onde se não sabe onde começam nem onde terminam, frases refinadas cada vez mais perto da verdade de hoje, frases ditas hoje à minha mãe: «Mãe, um verdadeiro louco não tem consciência nem personalidade única, vagueia entre amigos eus no seu diálogo com o eu do seu pensamento, não compreende o que faz nem o que fez, flutua, é indiferente a qualquer conclusão de causa ou consequência. Mas eu não mãe, eu lembro-me de tudo embora não me lembre de todas as palavras ditas estes anos todos, mas eu tenho consciência»
A minha mãe pede para eu lhe tirar o café porque o meu pai está nervoso com as minhas palavras e por isso ausentou-se da cozinha onde comemos para a marquise, para que possa dizer que não ouviu nem nada se passou..
-- Sim, filho, diz a minha mãe, lembras-te que cuspiste na tua irmã?
-- Sim, e outras coisas mais.
-- O teu pai está nervoso por causa de uma coisa que tu disseste há dias...
-- O quê?, pergunto.
O meu pai, que afinal ouviu tudo, volta da marquise e diz: -- Tu disseste que eras doente porque nós somos doentes! Eu nunca acusei os meus pais de ser doente.
-- Ó pai, não me expliquei bem, deixa-me explicar...
-- Não, não quero ouvir.
O meu pai sai novamente da cozinha e volta para a marquise, eu continuo a falar para a minha mãe mas de modo a ele ouvir.
-- O pai percebeu mal, o que eu quis dizer é que sou um fruto da vossa árvore, do vosso trabalho, do vosso amor, sou partes de ti mãe e partes do pai, há coisas e hábitos que eu tenho porque aprendi convosco, por exemplo, tu mãe, olha... a história do Manco... eu fui enganado, é algo que aprendi contigo, desculpa, eu e tu nós somos um pouco lorpas, queremos fazer o bem, ajudar o próximo e depois é o que se vê, neste aspecto sou como tu. O pai pensa que eu o culpo de eu ser doente mas não é verdade, o que eu tenho é partes de ti e partes dele. Dele tenho, por exemplo, o exaltar-me quando me emociono num argumento, levanto a voz como o pai, é um hábito que eu ganhei com ele. Mas também tento ser rigoroso no trabalho, ser profissional, fazer bem as coisas, eu gosto de trabalhar e isso eu ganhei com ele. Portanto, nenhum ser humano é perfeito, temos todos coisas boas e coisas más, eu sou um fruto vosso, foram vocês que me educaram, que me deram de comer e me vestiram, puseram-me na escola, essas coisas todas não as aprendi com os vizinhos ou as más companhias como vocês lhes chamam. O pai pensa que eu estou a culpá-lo... eu próprio, às vezes, sinto-me culpado de coisas que nunca fiz, o pai é igual.
Vem tudo isto a propósito de frase da minha mãe ao almoço: «o relatório foi assinado por uma pediatra», uma frase que lhe saiu inocente e espontânea e que pôs o meu pai nervoso. Para o meu pai, certos temas são tabu e se forem abordados ele fica nervoso e quase doente. Ainda agora, antes de vir ao café escrever, deixei o meu pai deitado ao comprido no sofá da sala, de olhos fechados e de mãos entre as pernas, tal como eu em posição fetal quando me dizem palavras fortes. Perguntei-lhe se era a dor de cabeça de ontem e ele evadiu-se à pergunta, acabei por lhe dizer:
-- Pai, não queres falar não fales, deixa-me apenas voltar a dizer «eu já não te culpo de nada, já passou, eu gosto de ti, eu aprendi a gostar de ti, a respeitar ou a aceitar enfim aqueles pormenores dos quais não gosto em ti, já não quero guerra contigo, já não quero fazer-te a guerra que tu nunca quiseste fazer comigo. Uma vez, o Tintol disse que andou à porrada com o pai, não sei quem ganhou mas hoje em dia convidam-se um ao outro para irem almoçar os dois ao restaurante, ele paga ao pai o almoço, às vezes é o pai que paga. Mas nós somos diferentes. Tu nunca quiseste a minha guerra, e então eu tive que a inventar, e guerrear sozinho contra o moinho de vento que só existiu na minha imaginação, tenta imaginar o que as pás das turbinas eólicas fazem aos pássaros e o zunido que ensandece qualquer ser vivo. Mas há mais de dez anos que decidi parar com tudo isto. Foi no hospital quando estavas no hospital com a cervical em risco devido à tua queda na aldeia. foi aí que vi que gostavas de mim. Tu, ali em risco de ficares paralítico, com a cabeça imobilizada e balanceada com pesos para não se mexer, e ainda assim, tu a fazeres esforço para me falares e tentares dar conselhos. Tu talvez a pensares que seriam os últimos conselhos. Foi aí que eu voltei a começar a gostar de ti, tenho desde então tentado ser teu amigo, aos poucos. Nós somos dois galos mas eu não quero estar acima de ti. Aliás, eu sou um garnizé que é mau e dá bicadas no galo e tu és o galo, eu só quero estar num poleiro ao lado do teu a falar contigo, a ser teu amigo.
Aqui, emocionei-me e não disse mais nada, fechei a porta e vim ao café. Ocorreu-me a seguinte ideia: é claro que ele lá no fundo gostaria de poder culpar os pais, só não o faz porque a sua moral não o permite libertar-se desse estigma, ele reprime-se, ele desculpou os pais dando-me a mesma educação que eles lhe deram. Mas que me interessa isso? Que me interessa que o meu pai tenha culpa de quem eu sou?
Para que se perceba do que estou a falar, temos de recuar uma vez mais à hora de almoço quando se falou do Rendeiro à mesa. O banqueiro. Eu disse: -- O Rendeiro foi-se queixar de que é cardíaco e o relatório foi passado por um psiquiatra!
A minha mãe disse: -- E em 2012.
-- O relatório é de 2012?
-- Sim. Olha... quando tu tiveste o problema foi preciso um relatório e quem o passou foi uma pediatra, disse a minha mãe.
-- Ah! Certo. Uma pediatra a quem vocês foram soprar com dinheiro e que nunca me viu. Foi uma ilegalidade! Só um psiquiatra podia internar-me e, afinal, foi com o papel de uma pediatra que me internaram, é mais uma prova de que fui enganado.
A minha mãe come, eu como, o meu pai come mas fica nervoso. Eu volto à carga: -- Olha mãe, mudou totalmente a minha vida e o meu futuro mas olha, foi há muito tempo, não adianta mais saber, vocês agiram preventivamente, não sabiam para mais, eu devia ter aceitado o convite naquela manhã de delírio, o convite do falecido sr Costa para ir ao café com ele, eu estava doente mas talvez não fosse doente, quem sabe se naquela manhã depois de não ter deixado dormir ninguém, de nem o sr Costa me acalmar, aquele dia mudou a minha vida para sempre, quem sabe se não me tivessem internado, se me deixassem ser vencido pelo sono e dormir, quem sabe?, olha, a minha vida mudou, o Rogério inocente morreu, deixou de ser, aprendeu a dureza de um sistema que me tratou contra a esquizofrenia que disseram que eu tinha e tenho, viveu na miséria existencial durante oito anos e quatro internamentos, e irónico que seja, foi o meu amor católico pela Sanea neurótica que fez com que eu me salvasse. E depois perdi-a porque ninguém quer namorar alguém que se comporta como um louco com consciência, perdi os amigos porque me tornei uma seca, perdi os empregos porque não conseguia pensar e ganhava o que o antigo médico de família chamou de gastrite nervosa, chegou a negar-me o p1 para uma endoscopia, comecei a ter medo de conduzir e vendi o supercinco ao fim de um ano e dez voltas com ele aos Coriscos, enfim... talvez hoje não precisasse de comprimidos, talvez nunca tivesse precisado deles e agora, estou dependente deles e se não os tomo pioro, descompenso mentalmente, porque o meu organismo se alterou e habituou ao comprimido, o comprimido é uma droga, a minha vida mudou, o Rogério que eu era transformou-se no Rogério que eu sou, vocês não souberam fazer de outro modo, mas talvez tenha sido tudo necessário, quem sabe também se eu não perderia tudo na mesma se não tivesse sido internado, casaria talvez, casa, carro, emprego, filhos, créditos para férias, quem sabe se não estaria hoje divorciado, sem emprego, a viver aqui em vossa casa de novo, longe dos filhos, dando uma pensão de alimentos à mãe deles, estaria mal na mesma. Aquele Rogério revoltado tinha de morrer. Hoje sinto-me bem, tenho uma vida melhor, ninguém depende de mim para subsistir, estou calmo, quero estar de bem com todos, com vocês, comigo também ganhou o grande irmão, só não fico colado a ver entretenimento na televisão. E depois, como diz o Paulino no lp Baiano e os Novos Caetanos, grande disco escrito no tempo da ditadura no Brasil: «A esperança não é a última a morrer, o último é o herói, o cabra que não teve tempo de correr.»
Sem comentários:
Enviar um comentário