domingo, 30 de outubro de 2016

Para quê falar?
(Fragmentos dos Rascunhos do meu pai)

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Porque serei tão calado? Quanto mais falam aqueles que me rodeiam, menos vontade tenho de dizer alguma coisa. Talvez seja este o significado destes Rascunhos que retomei ao fim de seis anos. Dizer alguma coisa. Não sei com quem falar acerca da Aurora. Às vezes penso que o Claudio compreenderia, mas o rapaz tem mais que fazer. A Sonia está bem. Esforça-se por acompanhar-me e não quero magoá-la. É verdade que não falo muito com ela. O meu corpo fala com o seu e talvez isso seja suficiente. Será? Confesso que me mantém vivo, me desentedia o tédio. Nem sequer lhe disse que a sua barriga é uma delícia. Hei-de dizer-lhe. Prometo. Ela também não é muito faladora. Afinal de contas, para quê falar quando fazemos amor? Com a Aurora a festa era outra. Para começar, era festa. Ela não só tinha prazer como se divertia. O nosso acto era alegre. Não faz mal rir em pleno orgasmo. Sinto muita falta da festa. Aí reside o segredo. A Aurora não era calada, e eu também não o era nos tempos da Aurora. Provocava-me com perguntas. Fazia-me pensar. A Sonia, pelo contrário, quando fala dá logo as rrespostas. Respostas a perguntas que eu não formulei. A Aurora era insegura. A Sonia é seguríssima. Eu estou seguro da minha insegurança. Que confusão. Hoje estive a fazer contas sexuais. A verdade é que passei por poucas mulheres. Por fidelidade? Por preguiça? Não sei. Só contei oito. Nos meus quase cinquenta anos não é propriamente um recorde para o Guinness. Das outras, quero dizer, das ilegais, cinco foram apenas breves escalas. Não me deixaram marca. A que me deixou alguma coisa foi aquela Rosario. Talvez eu não tenha sabido mantê-la. Das outras lembro-me dos seios, do sexo, das pernas. Da Rosario, lembro-me dos seus olhos. Mais do que dos seus olhos, do seu olhar. Olhava como se quisesse dizer alguma coisa sem dizer. Nunca a vi chorar. Às vezes dizia-lhe coisas duras, a roçar o ofensivo, para ver se chorava. Mas ela só me olhava, profundamente, mas sem lágrimas. Terei alguma vez sido feliz? Antes da Aurora, perdi a Rosario. A pobre Aurora apagou-se sozinha. E agora existe a Sonia, que sabe acompanhar-me. A dúvida é se seremos um casal. Acho que sim, mas não deveria duvidar. Parece-me.
Porque terei mudado de casa tantas vezes? Passei por mais casas do que por mulheres. Escrevo e guardo estes Rascunhos aqui, no hotel. Não são para ninguém, nem sequer para mim. Não me são indispensáveis. Poderia viver sem os escrever. Na verdade isto não é escrever. É apenas dizer alguma coisa num papel.
O hotel. É o melhor emprego que tive. Só pelo privilégio de estar no meu escritório e ver os pinheiros, só por isso valeria a pena. Além disso, dou-me bem com as pessoas: empregados, turistas. Normalmente dou-me melhor com quem me é afastado do que com quem me é próximo. A pessoa que me é mais próxima continua a ser o Claudio. Não sei se tem valor como pintor. A verdade é que aquilo que faz não me agrada muito. Tornou-se um pouco pesado com aquilo dos relógios eróticos. Prefiro que seja boa pessoa (ele é) do que bom pintor.
O pinheiro maior mexe a sua copa. Que elegância. Acompanha-me bem, como a Sonia. um galo longíssimo e depois outro, mais perto. Muitas vezes tenho vontade de responder-lhes. Mas só sei emitir cacarejos humanos, não sei cantar como o galo.
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, página 112-113

'A borra do café'
Mario Benedetti
Tradução do castelhano (Uruguay) por Isabel Pettermann
Edição Cavalo de Ferro

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