terça-feira, 4 de outubro de 2016

«O que é que pode resolver as coisas?»
«Ela. O desejo de viver que houver nela.

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«A Lucinda tinha perdido o sorriso à força de pálida», explicou o homem. «E então virou-se para mim e respondeu. 'Então ao menos saiba o que eu tenho calado.' E eu disse: 'E o que é isso?' E ela contou que havia bastante tempo que abastecia a mulher de comprimidos e supositórios comprados em farmácias diferentes, e que 'A senhora sempre que me manda fazer recados dessa natureza diz-me não digas nada a ninguém e muito menos ao senhor.' E o homem contou ao psicanalista como, ouvido aquilo, sentira uma espécie de estrondo silencioso dentro dele. E ficara especado diante do olhar triunfante da Lucinda como uma lebre encadeada pelos faróis dum jeep. A verdade (a descoberta da verdade) entrara nele como o calor de um banho muito quente em que o corpo nu é mergulhado sem preparação nenhuma. E ele conseguira pôr-se a caminho da porta da cozinha. E ao chegar à porta, dissera sem se virar para trás: «Lucinda, tu tens vinte e quato horas para saíres daqui como o que a lei manda pagar em caso de despedimento sem justa causa.»
«E depois?»
Depois o homem telefonara ao tal médico que fora a única pessoa a quem até então ele falara no comportamento bizarro da mulher. Fora informado de que a mulher deixara de contactar tal médico havia mais de três meses. Esta informação originara novo espanto desagradável no homem, porque a mulher dizia-lhe regularmente que ia ao consultório, e o dinheiro das consultas saía da gaveta comum. O homem narrara então ao médico a cena com a criada, e o médico dissera que estava ao corrente do vício da mulher.
«Eu perguntei-lhe: 'Porque é que não me avisou? E ele disse: 'Era segredo profissional'. E eu disse: 'E quando ela deixou de ir ao consultório?' E ele disse: 'Continuava a ser segredo profissional'. Nessa altura eu senti-me verdadeiramente perturbado, porque é preciso que eu lhe explique uma coisa: quando a minha mulher e eu decidimos casar, combinámos que esse casamento teria para nós o sentido de um pacto: entre outras coisas, cada um de nós nunca mentiria ao outro e estaria à vontade para pedir a ajuda do outro em qualquer sarilho que fosse, sem vergonhas. E de um dia para o outro eu encontrava-me a partir a compostura de encontro a segredos profissionais de médicos e criadas.»
«E depois?», perguntou o psicanalista.
«Depois veio outro médico. Havia clínica, tratamento de sono, mais clínica. Durante o tratamento de sono levantou-se da cama sem saber onde estava, e andou a vaguear pelos corredores aterrada de espanto. Acabou por se meter na cama doutro quarto e ainda para mais borrou-se nela, e por fim a enfermeira tratou-a vigorosamente mal. Este género de coisas são todas bastante horríveis, ou pelo menos acho assim. E depois toda a gente começou a não suportar estar com ela, a começar pelos que gostam mais dela. Quando a vão visitar fazem esforço como quem vai ao dentista e ela parece que não dá por isso mas dá. Só que nunca fala dessas modificações. Hoje em dia está mais só do que o último moicano no Polo Norte à meia-noite polar.»
O homem calou-se para engolir um copo de água e disse:
«Neste momento está numa clínica, entrou ao meio-dia.»
«De livre vontade?»
«De direito sim. De facto, à força.»
Pequeno silêncio.
«Afinal já sei o que queria perguntar-lhe», disse o homem.
«C'est-a-dire?»
«Quer dizer: E DEPOIS?»
O psicanalista soriu. «Este alcatifas sorri como um polvo amanda ferrado», pensou o homem. Sentia uma nascente simpatia pelo outro, pressentia-o nadando fora das comuns correntes da linguagem.
«Oiça», disse o psicanalista. «Mesmo que ambos quiséssemos eu não podia ocupar-me da sua mulher. E não lhe posso dar senão uma vaga opinião.»
Desta vez foi o homem quem sorriu: «A minha opinião acerca deste assunto é a coisa mais vaga de todas as coisas vagas», disse ele. «Estou como um soldado francês na campanha da Rússia, ignoro tudo excepto que faz frio e muito russo.» Depois que disse isso, o homem pensou: «Por que raio fui eu buscar a campannha da Rússia?»
O estrangeiro começou a interrogá-lo. As perguntas incidiam fundamentalmente sobre os pais da mulher, sobre os irmãos da mulher. Pelas perguntas o homem acabou por entrever que o outro estava a tentar saber alguma coisa sobre o modo de ser dessas pessoas, e sobre o modo de ser da mulher com elas. Depois foi a vez dos modos do pai dele, dos dele com os pais e dos da mulher com os sogros. «Isto parece uma revista de modos», pensou o homem.
«Olhe», disse o psicanalista ao fim das perguntas todas. «Eu só poderia ter uma opinião um bocado fundada depois de um tempo útil de análise da sua mulher. Nas condições em que nos encontramos, só posso dar-lhe a minha opinião acerca do que você me disse. Seria desumano deixá-lo partir sem lhe dizer nada, mas repare bem: eu disse: uma opinião sobre o que você me disse.»
O estrangeiro falou durante alguns minutos. O homem escutava muito atentamente.
Quando o psicanalista se calou, o homem perguntou-lhe:
«E o que é que você acha que se deve fazer?»
Muito leve encolhimento de ombros.
«Um psicanalista dirá sempre que a análise às vezes pode ser útil. Dirá também que quase sempre vêm ter connosco quando tudo o mais não resultou. Quer dizer, quando todos os erros possíveis foram cometidos. No caso da sua mulher, parece-me de dizer que nem internamentos nem policiamentos resolverão as coisas.»
«O que é que pode resolver as coisas?»
«Ela. O desejo de viver que houver nela.
«Não sei por onde é que anda esse desejo», disse o homem. «Hoje em dia. Não sei de todo onde é que ela o escondeu.»
'

,página 122-124

"Directa"
Nuno Bragança
edição Planeta deAgostini 2000

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