O meu terceiro internamento hospitalar foi também o meu primeiro internamento compulsivo. Eu andava doente embora achasse que estava mais lúcido que o mundo à minha volta. Quando me pré-inscrevi num curso de programação php num centro de formação de Derza, uns meses antes, não estava doente, estava apenas deprimido e desempregado. Olhava por mim abaixo e punha-me a pensar nas minhas habilitações profissionais, tinha o canudo do curso superior, isso dizia-me que era engenheiro. Mas eu reflectia seriamente que a pouca coisa que, de facto, sabia era desenvolver aplicações multimédia em formato cdrom. Habilidade que desenvolvera nos trabalhos anteriores, habilidade que se ia tornando obsoleta com o implantar massivo da rede online. Pouco sabia de web e decidi aprender programação php, para, quem sabe, poder encontrar emprego nesta área que já era futuro a explodir. Foi neste espírito que me pré-inscrevi, para que pudesse ter um futuro profissional na minha área de estudos. Ao mesmo tempo ia fazendo desenhos e aperfeiçoando o meu pintar, ao mesmo tempo ia sempre ao café ler o jornal e procurar empregos no «procura-se», o que eu queria na realidade era um trabalho e não me importava a área, queria trabalhar e ganhar dinheiro, sustentar-me, ter a minha casa, e de noite deixar dormir em paz os meus pais no quarto ao lado, queria ter uma vida. Como nos dois últimos anos tinha trabalhado parcialmente mas tinha ganho um salário acima da média e, após desistir ao fim de quinze dias de uma estadia de quinze dias de aprendizagem numa fábrica de reparação de telemóveis, cheguei à beira dos meus pais e disse-lhes que tinha arranjado uma casa de bairro para viver. Eles não gostaram da ideia mas eu levei-a avante, pois podia do meu bolso pagar a renda, o senhorio fizera-me um contrato e pusera um fogão na cozinha e eu assim regressei à cidade onde nascera vinte e nove anos antes. A cidade na qual eu sonhava viver escondido no meio da multidão e pintar e ganhar dinheiro.
Então se tudo era sonho bom porquê dez meses mais tarde estar a ser internado compulsivamente? Quinze dias antes, estivera com a minha mãe numa urgência psiquiátrica a falar com a minha primeira psiquiatra, fora ideia da minha mãe, eu estava actualmente sem acompanhamento e sem tomar os comprimidos, e a verdade é que ela não podia fazer nada por mim, porque eu estava na fase ascendente, eufórica, cheio de comunicabilidade, debitando discurso de quem lia e lançava ideias para o ar, uma delas foi eu dizer que o meu próximo internamento seria compulsivo, disse-o a rir pensando no filme Lilith, onde o assistente de psiquiatria Warren Beatty se apaixonava pela louca Jean Seberg e, no final do filme, pedia, ele-próprio, para o internarem. Para mim, compulsivo era isso, uma pessoa pedir para a internarem, sentir compulsão em se tratar. A doutora riu-se, não sei se lhe falei realmente deste filme, mas a última frase que ela me disse nessa noite de urgência foi «se calhar, tem razão, o texto está escrito!» e esta frase entrando na mente de um esquizofrénico, que não se considerava doente, foi mais uma acha para a fogueira de ideias continuamente a me virem ao pensamento, uma acha entre tantas outras intuições de que o meu mundo era vigiado, e que eu próprio vigiava, sempre na desportiva, se ia na rua e via um homem num telhado em frente imaginava um sniper, ria-me e roubava um Jornal de Letras do quiosque sem qualquer problema ético, sempre que via na televisão os debates da onu sobre a futura segunda guerra do golfo e reparava que os participantes usavam auscultadores nos ouvidos, eu punha a tocar no leitor de cd música surrealista, porque, em vez de entender que os auscultadores eram a tradução dos discursos, pensava que eles eram janelas de entrada para o som da minha aparelhagem e que assim eu estaria a interferir no debate e a foder os nervos àqueles palhaços que falavam sobre armas de destruição maciça. Ou seja, eu vivia em feedback com o mundo e qualquer frase captada pelos meus ouvidos, fosse na televisão, fosse o Syd Barrett no leitor de cd a interromper-se falando nas diversas takes de voz e guitarra, fosse uma frase lida, fosse um concurso solitário de punhetas de madrugada a ver as modelos de cabeleireiro nos anúncios das televendas, tudo isto contribuía para o cavalgar da psicose, para me fazer sentir se não dono do mundo, pelo menos alguém importante, que tinha a sua palavra a dizer e que ninguém podia ignorar.
O copo entornou-se quando finalmente fui chamado para começar o curso e reparei que a maioria dos alunos eram mulheres, uma coisa estranha em engenharias informáticas, e a maior parte vinham de letras ou artes, entre outras peculiaridades naquela saula de aula. Comecei a achar que o curso era uma farsa e comecei a disparatar. Habituado a falar alto em casa comigo próprio, comecei a debitar discurso e a perturbar as aulas, fui chamado para falar com os responsáveis pelo curso, ao fim de uma semana chamaram a polícia. Numa manhã de sexta-feira, saí como um senhor a quem davam boleia e fui conduzido a uma esquadra a três ou quatro km de distância e, incrivelmente, dentro do posto lembrei-me de dizer «então já posso ir embora?», eles disseram que sim e eu vim-me embora a rir-me e a dizer «que palhaçada!». Caminhei a distância até ao centro de formação. Ás duas horas da tarde não me deixaram entrar e como eu me recusasse a abandonar as instalações, chamaram de novo a bófia e levaram-me à urgência, médicos e polícias a tocarem-me, a tirarem-me os cigarros, etc, eu a contorcer-me no chão para eles me deixarem em paz, saí directo para o hospital central psiquiátrico onde me largaram na solitária com uma injecção no cu para dormir e sem um penico para mijar. Começou assim o meu internamento compulsivo e, apesar de só depois o ter percebido, foi a autoridade que sentiu compulsão em me internar, o que me fez pensar na ironia das palavras. Já nos dois internamentos anteriores, a solitária tinha o título de sala IQ, como se nela se testasse o coeficiente de inteligência e só os mais aptos lá entrassem, uns brincalhões estes funcionários da autoridade mental.
Estive seis semanas internado com o meu caso em julgamento, foi-me concedido um advogado que nunca me deixaram ver ou ele nunca me quis visitar e quando foi tempo de sair, disseram-me que tinha de levar uma injecção e assinar a dizer que autorizava a injecção. Recusei porque me lembrei do estado em que a outra, três anos antes, me deixara. Foi marcada a audiência em tribunal mental para julgar a minha situação. Não fui convocado para o meu próprio julgamento. Can you believe? Foram os meus pais interrogados por mim e a sentença foi decretada: a minha mãe ficou de me dar cinco euros por dia e o meu pai pagar-me a renda, além disso, preencheram-me os papéis para o rendimento mínimo e para um curso no centro de desemprego. Quanto a mim, na consulta seguinte, já novamente deprimido aceitei tomar a medicação em comprimidos e os médicos escreveram um relatório que enviaram para o tribunal a recomendar a substituição do tratamento compulsivo por tratamento de ambulatório voluntário, a diferença é que se não fosse à consulta por qualquer motivo, a polícia não viria buscar-me para me levar ao hospital.
Caiu-me mais uma vez a realidade em cima, podia ter esperneado mas nunca deixara de ser um zé-ninguém.
Passei os três anos seguintes integrado em cursos de formação em informática onde a maioria dos formandos parecia estar de férias ou em trânsito para outro lado: havia professores de educação visual, economistas e contabilistas, até realizadores de cinema e engenheiros formados para quem aquelas aulas eram um passatempo e sabiam mais que os formadores. Um destes, por exemplo, formador de linux punha-nos a jogar jogos em linux e depois incomodava-se quando nos testes alguém copiava, os directores do centro privado de formação organizavam lanches com catering de comida e bebida no espaço traseiro e nos confiavam que dentro de pouco tempo iriam começar as obras de ampliação das instalações, e eu alienado no meio daquilo tudo, de nada aprender porque toda a gente parecia estar apenas importada com o subsídio de formação ao fim do mês e com o destino das férias em perspectiva… eu… a coisa mais interessante que experienciei foi o verniz das unhas dos pés de uma colega. O restante era a pasmaceira de dinheiro roubado, um negócio da cee e programas operacionais da treta, agora diz-se negócio da china o dinheiro desbaratado em cursos onde ninguém aprende nada além de cusquices e, às vezes, namoricos. Fartei-me de vez, chegaram a telefonar-me para repetir o mesmo curso, deviam precisar de numerus clausus para poderem obter financiamento. Recusei envolver-me em mais outra fraude e disse que tinha sido admitido na universidade, num curso de pós-graduação de dois anos. Mais uma fuga em frente. Podia ter escolhido design mas como não gostava pessoalmente de alguns professores, escolhi matemática aplicada porque me lembrava de que esta tinha sido uma cadeira que me entusiasmara na minha anterior licenciatura. De um momento para o outro, dei por mim a assistir a aulas de Lógica e Geometria Diferencial e a sentir-me um burro num palácio, deixei de ir às aulas e comecei a frequentar a biblioteca municipal, acrescentei ao meu sentido de perdição, a perdição do Leverkhun, a personagem que enlouquece em 'O doutor Fausto' de Thomas Mann. Acabei expulso por excesso de faltas e a bolsa foi-me cortada.
Voltei a Derza para o ninho familiar. Arranjei um emprego em que me declaravam engenheiro num contrato sem termo mas ganhava apenas o salário mínimo, o meu trabalho consistia em introduzir dados roubados nas páginas web de outras empresas no sistema administrativo web do nosso futuro site de empresa. Foi aqui que voltei à tona de água, apesar de a empresa se ter revelado mais uma fantochada de apoios públicos à contratação, à compra de material informático, ao financiamento de projectos que não saíam do papel, porque os sócios-gerentes que decidiam e organizavam o nosso trabalho diário, estavam mais interessados em fumar ganza os dois no sótão e a comprar carros para a empresa. Voltei à tona de água porque finalmente tinha um contrato de trabalho seguro, pastava a mula sem nada fazer das 10h às 18h30m, e podia eu próprio dedicar-me à noite às minhas pinturas no Anexus 51 nas traseiras da casa familiar. A boa disposição voltara. Além disso, surgira uma oportunidade de expôr pela primeira vez. O meu rumo até então em ziguezague começava a encontrar o seu norte.
( continua daqui )
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