quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Tentara recriar a crueldade que conhecera, sem se aperceber de que o mundo ansiava por fazê-lo no seu lugar

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-- Já não está.
-- Não? A tua exposição de carros sinistrados... Ninguém se apercebeu, mas foi isso que encenaste.
-- Com algumas alterações.
-- Sem alterações, Jim. Eu compreendo...
Não pela primeira vez, relacionava o seu último acidente com a minha exposição, implicando que eu servira de catalisador da sua irreflectida maneira de conduzir. No entanto, eu pensava que fora inspirada por ele. Recordava-me das suas deambulações ao volante pelas artérias de Londres, a conduzir da mesma maneira perigosa que experimentara pela primeira vez na longa recta de Moose Jaw até à base aérea. Nos derbies de demolição nos estádios em ruínas do este de Londres, ele e Sally haviam desafiado a morte.
As ruas de sentido único excitavam-nos para jogar numa roleta desesperada. Certa noite, dois anos depois da exposição, David conduzira na direcção errada na faixa para oeste da rodovia de Hammersmith com os máximos acesos para obrigar os carros que rolavam no sentido contrário a encostar à divisória de segurança. Uma violoncelista de meia-idade e o marido, confusos com a sirene do carro da polícia, não conseguiram parar a tempo. Ela perdera a vida, o peito esmagado pelo volante, e somente o comportamento alucinado de David após a detenção e o seu serviço no Quénia o salvaram da acusação de homicídio involuntário.
Em obediência a uma alínea do Serviço de Saúde Mental foi enviado, primeiro, para a unidade de custódia especial de Rampton e depois para Summerfield, a fim de ficar em observação. Seis meses mais tarde, sujeito aos tremores do largactil na sala banhada pelo sol cheia de mulheres em aparente transe e rabugentas, a recordação da morte da violoncelista ainda lhe batia à porta da mente. Eu apenas sentia preocupação por ele e a sua personalidade mais jovem, agora da idade de Henry, que emergira do seu campo de internamento japonês para o mundo do pos-guerra. Ele entendera as minhas necessidades, mas não conseguira interpretar as suas. Tentara, com hesitação a princípio, recriar a crueldade que conhecera na China em guerra, sem se aperceber de que o mundo posterior ao conflito ansiava por fazê-lo no seu lugar. O psicopata era santo.
Quando o visitei pela primeira vez em Summerfield David dissera, ao definir as regras da nossa relação:
-- Lembra-te disto, Jim. O que eu fiz na rodovia foi o mesmo que tu na exposição de carros sinistrados.
Agora as baixas dos anos sessenta regressavam a casa, aos hospitais dos combatentes, estabelecimentos de doenças mentais e clínicas particulares.
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, página 239-240

"A bondade das mulheres"
J. G. Ballard
Edição Livros do Brasil

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