Dois mil e oito. Os jogos olímpicos e a perfeição do oito, o ninho de pássaro e a invasão da Geórgia no mesmo dia 08-08-2008. o ano dos furacões e o ano das eleições e do bpn. O ano da bolha a nível mundial. O ano em que começaram a cair mitos, bancos, políticos, governos, estados, o ano em que chegou à atenção da multidão (apenas preocupada em ser escrava para receber ao fim do mês, vingando-se ao falar mal dele pelas costas) aquilo que não era mais possível ignorar: incompetência, diplomas comprados, anos a roubar para bolso próprio, caíram as primeiras máscaras, os bancos faliram, os capitalistas decidiram nacionalizar o prejuízo, alguns políticos foram presos mas ainda assim o Zeinal teve direito a afundar a jóia da coroa, vendê-la aos brasileiros, falar portuguesing no parlamento e receber cinco milhões de indemnização por despedimento por justa causa. Não foi apenas em dois mil e oito que tudo isto aconteceu, apenas começou a explodir a partir daqui.
Dois mil e oito foi também o ano em que tive um contrato que não era apenas verbal ou mais um estágio pago a peso de ouro como no início do milénio. Em dois mil e oito tinha um contrato sem termo mas o trabalho era fantasia, os gerentes deixaram de aparecer, tinham-se aparentemente zangado, o salário começou a chegar atrasado, de vez em quando surgia uma nova ordem de trabalho, desconfio apenas para nos manter ocupados atirando areia uns aos outros, os dez telefones comprados no plano de investimento da empresa ganhavam pó na secretária ao lado, recém-licenciados desejosos de ganhar dinheiro fazendo o seu melhor trabalho para a empresa desistiam porque os gerentes os enganavam e eles desistiam completamente fodidos da cabeça, um exemplo: tínhamos computadores topo de gama que apresentavam ranhuras de leitura de cartões de memória e quando um destes freelancers precisou de passar o trabalho para o apresentar ao nosso boss, ficou sem o dito cartão de memória, porque ao introduzí-lo na ranhura respectiva, esta era apenas aparência, dentro da caixa não havia dispositivo nenhum. Como nem sequer havia uma chave de parafusos para abrir o computador e retirar o cartão que ficara dentro da caixa, este nosso desgraçado colega disse apenas «a minha colaboração fica por aqui, até nunca!» e virou costas. Muitos mais foram enganados e chegou finalmente a nossa vez de o também ser: foram três meses de salário em atraso. Nós, os que restavam e tinham contrato, decidimos rescindir por justa causa. O nosso primeiro dia de desemprego foi o Dîa do Trabalhador, dia um de Maio. Dia também da data da rescisão. Começava uma nova luta, inédita para mim: a luta para tentar receber o dinheiro em atraso. Metemos os papéis no Tribunal do Trabalho, preenchemos formulários para apoio judiciário, o patrão vendo finalmente que ficara sem empregados, assinou a carta e nós tivemos direito ao fundo de desemprego. E cada um de nós seguiu a sua vida, lutando individualmente e prometendo colaborar uns com os outros.
A partir daqui só posso falar da minha luta para obter os meus direitos remuneratórios. Valores que, num gabinete de apoio ao desempregado, me diziam ser dois mil e quinhentos euros e que, numa reunião para tentativa de conciliação onde compareci eu e o boss qualquer um sem advogado, a procuradora disse ser de quatro mil fazendo o boss assinar o documento e comprometer-se a começar a pagar a partir de Setembro em prestações mensais, algo que nunca fez. Foi mais uma tentativa para adiar o problema e eu quebrar psicologicamente em Setembro. Posso dizer que uma das razões para ter sido internado pela quarta vez, foi o facto de ter lutado com insucesso pelo dinheiro que me era devido. A segurança social devolvia-me repetidamente o pedido de apoio judiciário dizendo que faltavam documentos, eu respondia, esperava pela resposta, ia ao tribunal pedir para falar com a procuradora e ela perguntava-me se eu tinha vinte euros para pagar a taxa de justiça para o tribunal executar um acto judicial, eu dizia que não tinha e ela disparatava dizendo que estava para se reformar e o processo ia ser passado para outro. Quando chegou finalmente a resposta da SS e lá se dizia: apoio judiciário, pedido de advogado indeferido, fui aos arames. Disse que o facto de toda a gente se estar oficialmente cagando para mim me justificava a decisão de pôr uma cruz no documento que tinha recebido da SS, apresentei-o na secretaria do tribunal dizendo que tinha obtido advogado mas que não tinha recebido a comunicação do próprio advogado. Neste altura, a funcionária olhou para o papel, olhou para mim e pegou no telefone. Ligou para a SS e disse: «[Ele] não precisa de advogado, precisa de um solicitador de execução!» E assim, com um subterfúgio da minha parte, quando fui finalmente libertado em meados de Outubro do hospital psiquiátrico de Vallis, já tinha solicitador, e até advogado que depois me disse que o caso já não era da sua competência, já tinha risperdal-consta em injecção quinzenal no músculo da nádega, tudo para meu próprio bem segundo todas as autoridades, mas o dinheiro, esse nunca o vi. E também a farsa não acabaria aqui, o solicitador marcou a penhora e disse-me para comparecer, chamou o polícia para estar presente, soube mais tarde que poderia ter pedido uma penhora recorrendo aos serviços judiciais, mas como eu não tinha conhecimento das leis e modos de operar, pediu-me, quando estávamos à porta da empresa, para eu arranjar um serralheiro que arrombasse a porta, o polícia concordou e eu tive que pagar trinta euros a um serralheiro, depois disse que tinha um agente de vendas amigo que se encarregaria da remoção dos bens penhoráveis e respectiva venda, tive que pagar mais cento e oitenta euros sem factura. Removeram-se os bens. Quando mais tarde fui falar com o solicitador, ele disse que o agente de vendas estava incontactável, e desculpava-se, não podia fazer nada, parecia triste. Um ou dois anos mais tarde já eu estava noutro emprego, sou chamado ao palácio da justiça e o novo procurador diz-me que o meu processo vai ser arquivado e que, se eu quiser, posso seguir para a frente com um processo contra o agente de vendas. Ou seja, teria de gastar mais dinheiro para nada, para não receber dinheiro nenhum. Desisti a bem da minha saúde mental. Mais recentemente, tive mais uma confirmação: o nome do solicitador veio nos jornais como sendo acusado de ficar com o dinheiro dos requerentes. A noticia era curta e não dava pormenores, provavelmente teria cúmplices e eu fui apenas um dos que ficou a lerpar. Miséria! Arquivado.
Mas esta foi a bolha financeira. Falta falar da bolha emocional e de como passei eu estes meses antes, durante e depois do internamento.
É preciso recuar mais de um ano até à minha última consulta de psiquiatria. O meu médico informa-me que se vai reformar, que eu vou ficar sem acompanhamento e que os serviços farão todos os possíveis por me atribuir um novo. Eu tenho de ser sincero, nunca tive muito respeito por psiquiatras e sempre me mantive calado o mais possível perante eles. De modo que, em vez de ficar preocupado, vi ali a liberdade. E sendo livre, decidi fazer a primeira confidência a um psiquiatra sobre os motivos pelos quais achava que tinha sido internado pela primeira e todas as outras vezes. Pensei «sendo livre não preciso de ter medo do aumento da medicação, porque ele não vai mais falar comigo, não vou ter ninguém a mandar em mim.» Então contei que a cada internamento, além de outras razões, esteve sempre associada uma mulher, sempre uma diferente e com elas um repetitivo falhanço meu, o de não saber lidar com elas e sentir depois culpa, quase remorso, sentimentos que me levaram ao consumo excessivo de haxixe e ao aumento exponencial da ansiedade, e depois à perda dos empregos por invocação de justas causas, à perda dos amigos e à escrita de um livro. Disse-lhe que misturei nesse livro verdade e ficção, disse que incorporei debaixo do pronome «eu» demasiadas situações que não eram minhas e que senti que o livro distorcido por mim se estava a tornar realidade, que lia comentários nos jornais nas televisões e via lá ressonâncias ranhosas do meu livro que nunca tinha sido publicado por ninguém em formato papel e nem sequer estava terminado.
Aí ele disse «é aí que começa a loucura», quando se começa a suspeitar que estamos aparecendo na comunicação social e sendo famosos ou desprezados, quando tudo não passa de uma ilusão dos sentidos. Disse que talvez eu não fosse esquizofrénico mas apenas tivesse um problema de adaptação, de me ir abaixo, de falhar em situações importantes por ignorância própria ou porque simplesmente «a coisa não tinha de acontecer. E quanto às mulheres…» disse «quem vai à guerra…» Disse também que ia anotar esta informação no meu processo e passá-lo ao meu novo e futuro psiquiatra, que recomendaria baixar a dose de comprimidos e dentro de um ano, após observação positiva, deixaria de precisar deles.
Ou seja, saí da consulta para a liberdade pensando que não era doente, que nunca tinha sido doente e que tinha sido a minha fraca performance que me tinha internado. Comecei a comprar livros de Wilhelm Reich, tratados de psicologia, etc., além disso, eu sempre gostara do romance psicológico e gostava de pensar nos detalhes, de imaginar e compreender cenários de equivalência com a minha própria história, modos de agir que me podiam ser úteis no meu percurso futuro. Agora que saía livre para o mundo estava na altura de me salvar, de me curar, de me compreender nos porquês de ter falhado perante a pressão.
Então o que correu mal?
O ficar desempregado, o não ter o meu dinheiro de volta, o continuar a ter uma relação difícil com a minha família, o não ter amigos com quem falar de assuntos com interesse, e acima de tudo não ter nenhuma amiga com quem foder e conversar. Há seis anos que não estava com uma mulher.
Quando comecei a ir à sede do clube de futebol, para tomar café barato e também por os dealers andarem por perto, reparei numa cigana não muito mais nova do que eu mas já com dois filhos e sem marido. Foi, sem dúvida, a beleza das suas curvas o que me atraiu nela e também a sincronicidade da sua cara ser vagamente parecida com a Sônia Braga, de quem eu possuía uma fotografia na capa do disco banda-sonora de uma popular telenovela brasileira. Como ela se dava com todos, eu comecei a dar-me bem com eles, com rapazes com metade da minha idade que me vendiam ganza e a quem eu dizia que me sentia jovem, com a força dos dezassete anos. Mas quando finalmente chegou o momento de a abordar, ela chamou-me de «senhor» e eu vi que nada seria possível entre nós.
Foi aí que fiquei fodido de vez, o processo no tribunal não avançava, o dinheiro do subsidio não chegava ao fim do mês e tinha que mendigá-lo à minha mãe, o meu pai dizia que eu ia fumá-lo, além de tudo isto, tinha sido recusado por mais uma gaja. Reagi mal, nunca mais falei ou me aproximei dela, apesar de ela parecer ter agora algum interesse. Parecia-me interesse sem amor e eu fui-me abaixo, a fase eufórica terminara e há muito tempo que não tomava a medicação, tinha um novo conflito por causa disso com os meus pais, o novo psiquiatra nunca chegara e já se passara mais de um ano sem acompanhamento. Comecei a brutalizar-me e, do mesmo modo que falsifiquei a resposta num documento e tive alguns resultados, comecei a escrever cartas-bombas no caderno de linhas, com letra que mal se percebia, com palavras obscenas, insultos gratuitos, ameaças ao padre da paróquia, ao director de psiquiatria do hospital de Vallis, aos patrões em dívida, aos meus pais, e a todas as mulheres que me tinham desprezado em algum momento mesmo que também me tenham amado. Comecei a achar, e se calhar com verdade, que nunca tinha sido verdadeiramente amado, que todas elas, pelas quais eu sentia a culpa de as ter deixado e o remorso de estar hoje sozinho, só se quiseram aproveitar do muito que eu lhes tinha oferecido. Comecei a pensar que tinha sido o prostituto que elas tinham usado, comecei assim a demolir todo esse monumento de saudade que tinha construído para, em cima de cada pedestal, colocar uma estátua delas que perdurasse, comecei a insultar a minha própria memória, nada era mais válido, toda a minha vida era uma sucessão de farsas onde tinha sido usado e explorado e jogado para o lixo, a culpa já não era só minha.
Ter a consciência de que a culpa de ser burro na minha história não era só minha e de que, no fundo, «a saudade é uma flor roxa que nasce no cu dos trouxa» como me disse uma amiga recentemente, foi o que me tornou perigoso, comecei a querer vingar-me, a querer fazer mal, fisicamente, bem para lá da palavra escrita. Quando o meu pai me confrontou nas escadas uma tarde, eu chamei-o de paneleiro e levei a mão atrás da cintura para preparar um possível murro. Ele ignorou-me, foi telefonar, voltou, saiu com a minha mãe e irmãs de casa e foi passar a noite fora. «Tomei conta do castelo!» disse eu à minha vizinha no dia seguinte mas no fundo estava fodido, vinguei-me de me abandonarem assim à minha sorte e escrevi nas paredes de casa com lápis de cera dizeres inspirados nas atrocidades do Manson. Com a colaboração do meu cunhado e após uma tentativa falhada de me virem buscar, à noite foi de vez, os bófias conseguiram levar-me e entrava novamente no hospital, outra vez compulsivamente. Agora atribuíam-me psiquiatra, não o fizeram antes, não quiseram prevenir e quem se fodeu é quem sempre se fode: o doente e a sua família. Miséria!
Foi assim que a bolha surgiu e estourou na minha vida pela última vez. Se hoje estou relativamente bem de saúde mental, é porque, em Vallis, conheci uma mulher que também estava internada. Uma mulher que me deu o que eu precisava e a quem eu tentei retribuir, ajudando. Foi ao compreender que havia dores muito piores que as minhas que eu vi que sempre fora um menino rejeitado mas que nunca passara verdadeiramente fome de boca. Agora, eu e ela éramos companheiros de vida e de experiência. Se eu, ressabiado, dissera, no passado, que as mulheres me tinham condenado, era agora uma mulher que me estava a salvar e eu estava a lutar para a salvar a ela também. Não o consegui mas ficou a aprendizagem, fiquei a conhecer o outro lado. Ela salvou-me mas não foi o suficiente para que ficássemos juntos para todo o sempre. Que esteja viva, é o que lhe desejo, é tudo. Quanto à sociedade, paguei a minha dívida mas os cabrões, que ma fizeram contrair, que se fodam com o dinheiro que me ficaram a dever. Paguei a dívida de crescimento e educação para com os meus pais, compreendo o seu modo de vida mas não o aceito, em certos dias especiais os nossos destinos ainda se cruzam. Estou quites com as mulheres, os amigos é algo que desconheço. Não tenho mais internamentos para explicar. Deixo-vos com um palhaçada curiosa e cómica, entre tantas outras: a minha psiquiatra em Vallis perguntou-me se eu me lembrava de ter chamado paneleiro ao meu pai. Eu ri-me, ela era espanhola, e eu disse-lhe que sim, mas que em Portugal, um paneleiro era um homem que consertava tachos, «panelas comprende?» Arquivado.
( continua daqui)
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