domingo, 28 de julho de 2019

Elogio da pessoa que escreveu Vátistuta

Eu tenho estado nestes dois últimos anos a transcrever livros de poemas do meu vizinho Giuliani. A sua poesia é muito simples, muito básica, pouco mundo e muitos lugares comuns, tem também a ilusão de se achar grande e diz-se incompreendido por nenhuma editora pegar nele. Eu que vejo nele um amigo e um bom vizinho ainda que, às vezes, um chato do caralho, vejo nele muita coisa na qual não me revejo e nas quais não quero cair quando chegar à sua idade: é um exemplo ao contrário, é vendo a sua ilusão e as consequências da sua ilusão que eu faço por ser uma pessoa com mais juízo, como disse ao Xis e ao Vermelhinho: ajudar o Giuliani é fazer uma boa acção, todas estas boas acções hão-de compensar as maldades que já cometi. Digo isto como uma piada. Mas o Giuliani é uma pessoa boa e eu sou amigo dele, estou a passar-lhe os livros para o computador e a preparar-lhe os ficheiros para ele imprimir e fazer edições de autor, arranjando mais uma maneira de fazer dinheiro e de subsistir. Tem dado resultado porque o Giuliani tem muitos amigos e amigas e eles vão-lhe comprando os livros, o que o ajuda a sobreviver e a ser menos doente.
Dito isto, pergunto-me quando leio a sua prosa:«Isto não vale nada, porque hei-de eu perder tempo com esta literatura, porque hei-de eu impedir que ela se perda no tempo e no esquecimento?»
Digo isto como nota ao texto que a seguir transcrevo e que pertence a uma nova edição, esta chamada ''Contos de Deus e da Cidade, vol. 1'', um texto em que ele mistura o futebol com a falta de sono e de um cigarro e confunde jogadores com treinadores e com presidentes e soldados, é mel num pote, é quase absurdo e boçal, «para quê perder o meu tempo?»
O Giuliani pergunta-me todos os dias o que eu acho dos textos que vou passando, e eu velo um bocado o que sinto dizendo «Giu, tu não mentes, tu és o que escreves, mesmo a tua ficção se compreende conhecendo a tua vida e a memória que tens dela.»
Hoje, dei pela resposta à minha pergunta sobre o porquê de perder tempo com um poeta menor mas uma pessoa maior ou pelo menos boa, é essa resposta que resume o porquê de achar que não perco tempo: «Todas as pessoas são importantes, todas elas contam, todas elas hão-de ter voz, merecem ter voz, que fazer? Que queriam que o Giuliani fizesse às quatro da manhã, sem sono e sem cigarros, que fosse cravar para a bomba de gasolina ou fosse roubar? Não, fez melhor, escreveu um texto alucinado e um pouco burro, mas por uns bons minutos, já que o seu texto é longo, esqueceu a neurose do cigarro, não roubou ninguém e talvez tenha mesmo conseguido adormecer nessa noite.

Claudio Mur,
prefaciando:


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Querido Vátistuta

(Soldado a rapar frio na Bósnia)

Porto, quatro da marmita, acordado sem mais qualqué tipo de sono

Cara nu-ma-pe-té drumir. Cara mim, só gosta de golo... as fímbrias do vinagre daquela senhora já num me interessam, desculpe amigo os meus azeites, não tenho cara de azeiteiro. Estou teso e sem um cigarro no bico. Donde herdei eu esta fala, donde herdei eu este bico, cheira-me a pronúncia de homem do Norte, mais bacas, menos bacas, mais vois, menos vois, com o azar de não ser Pinto da Costa e o gosto, apesar do desgosto, de ser bermelho.
Estás com sorte ó Zé Vátistuta, estou teso e sem cigarros às quatro da marmita, num cartel onde não há sérvios nem bósnios nem portugueses nem portuguesas às quatro da marmita. De qualquer maneira, se estiveres interessado na minha vetusta escrita, contacta-nos. De certeza que o irmão Jorge vá gostá da oportunitá de eu publicá mais qualqué coisa, eu também. Ora passa muito bem que, como vês, escrevemos a qualqué hora, são quatro da marmita e sinto a necessidade de ir à Galp dar um golpe num cigarrito cravado. Aqui fica a deixa para o dr. Carrilho: os escritores sem subsídios e sem cigarritos não podem ir muito longe, mais valia irem para a Bósnia com trezentos contos e cigarritos, porque se aguenta melhor o frio com trezentos contos e cigarritos.
Desculpa não te mandá mais dinheiro mas estou teso, faz de conta que já tinha fechado o envelope para o Tráfico de Ideias ou quem sabe para a Con(tacto), que é a tal revista que te pode con(tactar). Não! Não te assustes que não é nenhuma nova arma, é uma rebista que o teu capitão não poderá fazer, apenas talvez encontrar na tua mochila e que, embora inofensiva, é altamente operacional. Este número é dedicado aos extraterrestres, agradeço-te Zé Vátistuta que nos informes da possibilidade de os sérvios serem extraterrestres, agradeçemos igualmente informações sobre os marcianos bistos daí. Dizem que as bósnias têm boas bistas, aqui o Boavista ficou em segundo lugar e o Porto foi pentacampeão, imagina o meu desgosto já que sou bermelho como o teu sangue.
Infelizmente na tua terra, se calhar a tua terra é Lisvoa e o teu clube o meu, o vem-já-não-fica, imagina ao que chegaram estas coisas por culpa dos supelentes estranjas que deixam agora o Eusébio no banco, ainda por cima quase sem crédito, acredita Zé Vátistuta que isto está falido... mais valia, mesmo ceguinho, o Ray Charles que o Thomas, o Sanders, o Harkness e o Gary Charles que não contam nada, desculpa o desabafo, mas bê se encontras aí alguém no teu polotão, alguém que jogue melhor, a gente sabe que o teu capitão não joga nada, a não ser quando faz reforço de marmita, coitado, também tem fome e precisa de desculpar o seu reforço... coitado.
E cuidado com os bósnios e com os sérvios malandros, aguardo confirmação sobre os sérvios que possam interessar ao nosso vem-fica, talvez tenhas aí uma solução de italianos, franceses, ingleses e portugueses que joguem melhor do que jogar para o terceiro lugar, lugar que eu aqui tenho rodeado de Andrades e Jorge Coutos, aqui, na Avenida de França junto à Boavista, onde fica o Espaço T e onde aguardo urgentemente a minha libertação, que nunca se sabe se pode vir da Bósnia ou se de Lisvoa.

Boas curtes Zé Vátistusta. Trabalhar de graça só mesmo para a Con(tacto)
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J. Alberto Allen Vidal
em
''Contos de Deus e da Cidade, vol. 1''
edição de autor

2 comentários:

  1. «Todas as pessoas são importantes, todas elas contam, todas elas hão-de ter voz, merecem ter voz»,
    ao que acrescentaria aquilo da eternidade (de todos) estar entre o nascimento e a morte, ê vuálá, uma filosofia de vida que subscreveria, embora nada fácil de cumprir.


    https://www.youtube.com/watch?v=GArbLv8q9Go&list=FLcEP4yowirR7IxUUJfnBQCA&index=87&t=0s

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    1. É o que tento fazer, é preciso encontrar o nosso lugar no mundo. depois de tanto vaguear mentalmente, encontrei um porto seguro.
      Se gostava de ter amigos culturalmente mais elevados? Gostava, mas também era preciso que eu próprio fosse mais elevado, o que faria com que esses narizes empinados não me desprezassem tão facilmente.
      O que importa é que jã não me sinto vítima nem mesmo de mim próprio. estou aberto ao mundo e à troca de experiências e sensações e a aprender com o Outro mesmo quando discordo dele.

      Pode parecer coincidência fictícia mas estava ouvir o album Nearly God do Tricky quando vi que a tua playlist continha um vídeo para a música Poems. Fui ver.
      Uma coincidência por dia dá substância ao dia.

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