terça-feira, 9 de julho de 2019

Caos

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-- Ela abortou contra minha vontade e eu acabei com ela, ela deixou a heroína e olha, engordou duma tal maneira com a medicação...
-- É, a medicação psiquiátrica e antinarcótica faz engordar.
-- E ela morreu, claro que sim, foi a medicação que a matou, a medicação é que lhe tirou os reflexos, tirou-lhe a agilidade, ela era uma mulher com vida, olha, a vida dela com a metadona, sabes que depois dela abortar eu acabei o namoro mas ficámos sempre amigos, ela visitava-me muitas vezes, ela tinha uma casa do caralho, tinha uns casarões, sabes?, ela tinha um numa esquina, eu tenho uma fotografia dela na praia, havias de ver como ela era linda, olha, nessa vez fomos à praia e eu caí e parti a cabeça em dois sítios, atirei-me para a água e alguma vez imaginava que, sem qualquer aviso na praia, logo que a gente chega e dá um mergulho leva com um pedregulho escondido na água, mandei um mergulho, olha parti a cabeça em dois sítios, dei com a cabeça num rochedo...
-- Aonde, em que praia?
-- Na praia dos ingleses. Mas sabes como é que estancou o meu sangue?, foi a minha namorada que, com algas, com algas conseguiu parar-me o sangue.
-- Com um penso de algas?
-- Sim, começou a pôr nas feridas e passou, mas pronto, parti a cabeça, não se faz, não se faz, estas praias deviam estar sinalizadas, desculpa lá, eu sou o homem que caí na esparrela mas se fosse criança mais rapidamente caía, queria ter um solzinho, uma água, uma praiínha, chegar normalmente, não ver rochedos nenhum, dar meia dúzia de passos, atiras-te à água e levas logo com um rochedo que não está sinalizado, custava alguma coisa pôr um aviso na praia?, eu acho que deviam ter um bocadinho de consideração.
-- Mas agora já deve estar diferente.
-- A não ser que tenham retirado os rochedos do rio...
-- Não, agora deve estar sinalizado, no tempo em que tu ias à praia ainda não havia aquilo das praias azuis, as bandeiras azuis hoje dão a classificação da praia, as praias azuis são as boas, as que estão sinalizadas, as que têm condições, e essas praias da zona da foz sempre tiveram rochedos e as pessoas sabem que às vezes não podem, têm de ter cuidado.
-- Pronto, eu já não ia lá há uns anos e vou, foda-se, descontraído da vida, a minha alegria de viver normal, atirei-me à água e pumba, também não estou a dizer que foi um choque frontal senão tinha morrido mas caralho, dei uma cabeçada, magoei-me, abri a cabeça em dois lados, mas nem fui ao hospital nem levei pontos nem nada.
-- Foi um corte.
-- Olha, no outro dia recebi os elogios duma senhora, pus-me a declamar poesia minha para ela, percebi que era da maior importância e estava inspirado e ela disse: ah você tem uma dicção para a poesia que é uma coisa única. Ela estava a dizer e a olhar para mim, deslumbrante mas logo disse: sou casada, partiu-me a piça toda. Mas eu a ler a minha poesia sou um espectáculo.
-- É Giu, eu já to disse a ti e também já disse ao Xis...
-- E eu: obrigado. Fiquei muito contente por ela, eu não me esqueço dela, a gente conhece tanta gente de um dia para o outro que até esquece as caras, mas a gente conhece-se, olha, há coisas que ficam, há coisas que ficam, ela foi boa para mim.
-- Pois, eu já te disse a ti e ao Xis, a comentar, os teus poemas quando sou eu, quando estou a passar os teus poemas, alguns poemas há que eu não acho piada nenhuma, mas quando eu os ouço tu a ler, parece que ganham música, tornam-se poesia se forem lidos como deve ser...
-- É verdade, eu fui à internet há uns dias em casa do Beto, e estive a ver o meu facebook e pus lá uns poemas, meti lá o padre freak e a chique do majestic, estes poemas são dos mais bem elaborados, mais engraçados poemas que eu escrevi sobre o Porto, principalmente a chique do majestic que é uma caricatura que eu faço, da nossa sociedade, das peneiras, das vaidades, das velhotas, eh está demais!, tens que ver isso, no mesmo dia já tinha dez góstos, agora não sei, eu tenho ainda muita coisa para pôr, e muitos outros que precisavam de ser trabalhados.
-- Conseguiste encontrar o livro que perdeste?, as confissões de um pobre de espírito, perdeste mesmo esse livro?
-- Foi, não sei dizer nada nem como, eu tenho outros grandes livros, mas não há outro igual, olha, escrevi um fado solidário com aquele português acusado em Itália, sim o Miguel Duarte, é uma injustiça...
-- É, o governo italiano é fascista! Mas parece que Portugal já se mexeu qualquer coisa, ao nível do parlamento, já começaram alguns contactos também diplomáticos de defesa, alegando razões humanitárias, e esperemos que, digamos, essa pressão do governo português ajude a contrariar a justiça ou lá o governo italiano.
-- É uma lei que está ultrapassada, uma lei que prejudica quem salva.
-- É uma lei nova, eles querem criminalizar quem ajuda, e não pode ser, não se pode criminalizar quem ajuda, quem dá uma esmola a um pobre não é?
-- Olha, aquela briga que houve entre o Trump e o Irão, xi aquilo está um barril de pólvora, olha, o Trump não se deixa ficar atrás, eles abateram o drone...
-- Mas estava no território deles.
-- Eles têm toda a razão mas e havia um avião com trinte e sete americanos...
-- E eles não o deitaram abaixo...
-- Estiveram na mira e sabes uma coisa, o presidente dos estados unidos disse aos gajos óbrigado, ainda bem que não mataram, eu também não ficaria contente se matasse cento e cinquenta pessoas, ao menos é honesto, aquilo está um barril de pólvora e o Irão continua a provocar...
-- Eu acho que quem está a provocar são os estados unidos que estão lá, ao largo do Irão com navios, cujos drones estão a espiar dentro do Irão, quem está a provocar é os estados unidos.
-- Sim, mandam porta-aviões para o Mediterrâneo...
-- Pois, mandam os porta-aviões e depois metem-se a enviar drones, eu acho que o Irão se está a defender, podia ter enviado o avião abaixo, se calhar era militar e não enviou, os americanos...
-- Se os americanos se metem com o Irão, não vai ser como com o Iraque e com os outros...
-- Vai ser mau para toda a gente e a Europa vai levar por tabela
-- Olha, eu quando tinha dezasseis ou dezassete anos escrevi um poema chamado Caos, vou-to dizer.
-- Sim, depois eu publico:
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J. Alberto Allen Vidal e ZMB, Junho de 2019

, a seguir um poema de J. Alberto Allen Vidal


Caos ‘1973’


Sistematologia fúnebre

Mundo moribundo

Exterminação racial

Guerra triunfante

Faces cadavéricas

Caos lancinante



– pelos meus olhos mortos

– passam imagens mortas

– de um mundo morto



Corpos deformados

Esgares de súplica

Rostos crispados

Imagens gravadas

de um último instante

que pertence ao passado



E eu

triste de mim

Pedra esquecida

Em mundo perdido

Espectador desesperado

de um facto consumado

Recordo Hiroshima

fico preocupado





8 comentários:

  1. "no mesmo dia já tinha dez góstos" :)

    eu não vi, mas fica mais um.

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    1. Vou transmitir pessoalmente ao poeta o teu gósto! A sorte dele é ser inocente e com isso ter 'uma amiga em cada esquina'. viva o poeta e amigo Julião. Conheces-lo das ruas do Porto?, olha, apareceu no jornal da junta :)

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    2. "viva o poeta e amigo Julião", Viva!!!!

      qual jornal? manda referências. É possível que o conheça de vista, em se tratando de um daqueles vultos da antiga boémia nocturna que andava por ali entre a Baixa e a Ribeira (?). Saudades! (não é bem saudade, é outra coisa)

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    3. Jornal de Paranhos, aparece um texto sobre o sarau que a casa da cultura lhe ofereceu e ainda uma foto em que ele aparece com a Teresinha do Aniki Bobó do Manoel de Oliveira, a senhora, agora idosa mas ainda firme, gosta muito dele.

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  2. *... Leões, Cedofeita, St. Catarina...

    ;)

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    1. eu âs vezes vou a cedofeita à galeria, de resto sou mais suburbano em campo lindo ou arca d'água. o júlio às vezes vai à tendinha dos poveiros ou ao pinguim.

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    2. arca dágua :) vivi alguns anos na Rua do Amial, e antes disso, 20 e tal entre Antero Quental e Faria Guimarães - somos muito conterrâneos.

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    3. eu só desde 2016 que vivo aqui, eu sempre fui de rio tinto mesmo estudando e trabalhando fora, mas nasci em massarelos na maternidade, brevemente em valongo e desde 2011 em quartos no porto.
      não sei se seremos muito conterrâneos mas gostaria de pensar que pudessemos estar hoje à distância de um metro ou autocarro :)

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