desenho em tela, ZMB 2020
segunda-feira, 30 de novembro de 2020
domingo, 29 de novembro de 2020
O reflexo imaginário tornará possível a realidade
O Capítulo minus V
Einstuerzende Neubauten: Keine schoenheit ohne gefahr
Porque será sempre difícil acreditar haver beleza sem perigo.
Existe um símbolo presente em memória desde que os gatos passaram a miar abrigados pois os lobos costumam andar à solta por alturas de Outubro na cidade vermelha. Repete-se ciclicamente de dois em dois anos. O dito amor existe em memória, é aquele que está depois da paixão física que termina quando as pessoas se cansam de cheirar o corpo alheio e decidem seguir em frente para a eternidade. Este amor está portanto escondido da realidade pela troca de álbuns que compilam reflexos fotográficos, apenas reais na altura em que a imaginação atinge o cio.
Durante os meus mais violentos acessos de humildade, que geralmente só concedo quando o meu ego se revela uma fonte inesgotável, dou seis meses para concluir uma história de amor. Sim! Quero fazer as coisas com calma. Para que a minha ela sonhada se possa tornar real. Ah Icata! A poesia é tão linda! Sim! Ah Icata, a poesia é linda mas o teu corpo não quer o meu.
Como numa profecia, Icata aparecerá, saindo da crisálida, quando acontecer o meu eclipse solar e a lua ficar sozinha sem ninguém que a ilumine. É esse perigo que deverei procurar. Alguém com quem cultivar jardins zen. Aí, já serei uma prioridade na sua vida. Para encontrar quem não procura o sol e vive na lua, eu deverei transfigurar-me de sol em lua, alterar ligeiramente a minha identidade em breves momentos para que possa aprender o momento em que poderei por fim encontrar-te e para que o meu vazio seja preenchido pela tua força, a força da ela real. Preciso que me esvaziem o escroto. Esvazia-me, vá lá. Como sei que não tens interesse nisso, então castigo-te com a caneta. Evacuo a caneta. Para sublimar resolvo escrever, como sabem dedico-me frequentemente ao abjeccionismo que me traz desencantamento mas também liberdade.
Vem-me à memória que tudo é uma questão de tempo. Quando? Poderá demorar uma hora, poderá ser um dia, um mês, seis meses. Será uma questão temporal até te ter nos meus braços. A sério? Porque não acredito que consigas resistir a ti própria e à tentação de me possuir. Eu sei que sou narciso e que penso que a minha beleza é irresistível. Sonho com a Ela que me derrube, que me faça sentir acabado e careta, seria sinal de que vivi. Por isso, agora escrevo para ti, escrevo um poema chamado Aqaaismja:
Anseio por te ver, tenho saudades tuas, quero tocar-te, quero sentir, dar-te prazer, as responsabilidades os compromissos não permitem no entanto, aspiro o perfume, inebrias-me o cérebro, estou totalmente fora, nada mais faz sentido, minimal é a chave, não digo coisa com coisa, se calhar nunca disse, chegará o momento onde não serão precisas mais palavras. Mas faço amor contigo nos meus sonhos e poemas brancos:
Se eu te pintasse minha linda rainha africana, em África onde? Hmm… talvez na do Sul... se eu te pintasse minha linda rainha animal, colocaria a tua alma dentro de uma gatinha, e tu sabes que não és inha, tu sabes que és ona, és cativante, estonteante, a tua cor será sempre castanho-laranja, e usarás o chapéu preto, o símbolo do amor de teu avô. És branca?, ages como uma branca quando estás no quadro de ardósia admirando as crianças de deus, essa beleza? Qual é a linguagem com que me falas nos meus sonhos verdes de lua lua? Alguma vez te falei dos verdes campos do sonho? Confessa.
Icata, começas por ser uma felina egípcia que se transformará numa esfinge e hoje és grega e tens asas, o teu chapéu é o chapéu de Sabina do Kundera, começas por ser a Sabina com quem eu vejo filmes em vídeo e falamos sobre literatura, hoje és muito bonita, tento conquistar-te com o intelecto. Sou correspondido ao nível platónico. Somos amigos sem a parte sexual, embora certamente pensemos nisso quando, por exemplo, vens e eu te mostro o que escrevo e te cozinho um esparguete com costeletas e tu te lembras dos malmequeres que te ofereci. Tento a minha sorte sexual. Repeles-me sem qualquer explicação pronunciada, dizes apenas não desapareças, e eu desapareço sem to dizer e voo sobre o oceano, venho a saber que me telefonas para casa de meus pais e envias cartas, parece que afinal eu te faço falta. Transformo-te num mistério, numa espécie de musadeusa, tento que a memória possa voltar ao tempo presente, penso que posso matar um amor antigo recorrendo a mulher não nova mas antiga, e apego-me à sensação de bem-estar que havia tido no passado. Por isso, faço agora o que me havias feito: escrevo-te cartas correspondidas, chegamos a fazer planos de viagem mas... tudo interrompido porque paralelamente sou internado aqui no CReEA, estou em depressão pós-internamento.
Mas eis que voltas a comunicar. Continuas bonita mas eu sinto que já não te acompanho, falas-me de escritores croatas e eu nada sei, não tenho novidades, não tenho coisas boas para contar, as palavras trocadas tornam-se raras. E eu acabo por ter um momento desagradável: despeitado por as tuas respostas já não serem rápidas como antigamente, escrevo-te palavras às quais respondes com firmeza. A distância de segurança que introduzes entre nós mantém-se inalterada, não há simplesmente contacto.
Tu já não respondes às cartas e eu perdi o teu número de telemóvel, pedi-te em aflição para não me esqueceres e tu já há muito que não te interessas por mim, sou carta jogada ao lixo. Nunca foste minha e eu deixei de ser trêndi. És o símbolo da Ela que me derruba por abandono ao silêncio. Mas isto te digo: se quando acordares todos os dias, de manhã, não sentires que negas os teus impulsos mas, mesmo assim, continuares à procura de um ponto limite, não te assustes. Como poderá haver limites? Porque não atingir esse limite onde provavelmente tudo se desmanchará e o jogo cairá dos céus semeando a destruição da cidade? Porque não viver sem a necessidade de encontrar o limite?, sem a necessidade do elemento Tempo nem a procura do Espaço, porque não deixar o tempo correr sem o medo de arrasar, porque não compreender que isso será uma consequência do medo de arrasar ainda mais? Que fazer? Deixar-te em paz... mas se for obrigado a desistir para deixarmos de nos encontrar... um de nós terá de se mudar para outra cidade por necessidade de ter espaço por um momento, meses ou qualquer outra unidade temporal. Eu diria mesmo nunca mais. Digo-te no entanto que um íman de nós virá inconscientemente procurar o outro. Lembrá-lo-á na memória de quando tudo parecia virgem e por descobrir, e, depois, começar a desistir. Se desistires por alguma destas razões ou qualquer outra realidade cultural, como diz Ondjaki, tu afirmas, minha Ela sonhada, que perderás e, por isso, galopante aumentará o número de dias em que acordas triste, o fogo será arrasador. Perderás porque nunca quiseste. Proponho-te, minha Ela sonhada, proponho que te decidas entre perder o teu tempo para sempre e eu te procurar para sempre. Não conseguirei mesmo falar de qualquer coisa e será necessário descobrir outras formas humanas para te esquecer.
Tão doce a inocência de um apaixonado, diz Id continuando, o amor é tétrico. Ela nunca me dará a chave do seu botão, eu gostaria de dizer sim.
O erro é pensar que Icata é uma cristalização do passado, esqueço-me que as pessoas evoluem e fazem escolhas, ela fez a escolha de me ignorar, não é a primeira mulher a fazer-me isto. Da minha parte, não pretendo pedir mais desculpas a pessoas que já não querem mais a minha presença. Chego à conclusão que não preciso mais de mendigar carinho ou atenção. Todos me ignoram, sou apenas um número a quem dizem: olha a geleia, é feita de amoras. Vou dormir, que o dilúvio venha e me desentupa a merda na canalização cerebral.
Hmm... amanhã será um novo dia.
Agora, na verdade estou na cozinha dos meus pais em Triza com este quadro na memória.
A minha mamã, que repara no meu olhar ausente, diz: olha filhinho, não te posso arranjar uma moça, olha... vou-te oferecer uma pequena caixa de Pandora com chave e cadeado para tu guardares o teu livro. Deste modo, não precisas mais de saltar a fogueira de S. João enquanto os balões sobem na atmosfera e tu deixas a disquete cair.
O meu papá adiciona: bem filho, eu digo-te filho, existem uma data de agências matrimoniais filho, podes obter um contrato de três anos lá filho, filho...
Respondo estúpido e inocente tal e qual o Bart Simpson dentro da tevê de plástico PH: eh... na verdade, prefiro procurar uma agência funerária e pensar na cor do caixão, depois, receber o telefonema de confirmação de emprego com um copo de vinho na mão.
As minhas irmãs riem-se. Nasceram na estrela sortuda enquanto eu sou o desajustado guna, o bode negro.
Ela disse: e eu ri-me e gravei:
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Nas ondas do teu cabelo ensinaste-me a nadar
Agora que és careca ensinas-me a patinar
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Ceiça
Porto, 2018
sábado, 28 de novembro de 2020
What seems to be the problem?
sexta-feira, 27 de novembro de 2020
Beams of sunshine
dedicado à lady alfa
na sequência de uma troca de comentários
«it´s good to be alive»
no matter what happens, always remember that
Aranos é um cidadão cigano oriundo da antiga Checoslováquia
que há décadas vive na República da Irlanda.
Embora tenha algumas obras publicadas em editoras,
ele é um mestre da auto-edição musical.
Visitem:
http://www.aranos.org/blueturt/aranos_home.html
quarta-feira, 25 de novembro de 2020
Hombres, hampones e ómes
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«Hum. A vossa causa parece-me justa, deixem aí a petição na recepção que eu assinarei de manhã, antes de me meter a caminho. Desculpem não descer agora, já estou despido e estou bastante cansado...»
«Muito obrigado, e desculpe a maçada.»
«Deixem aí o documento, por favor...»
«Muito obrigado e sucessos em Espanha.»
«Serão entregues...»
Só depois de fechar o telefone é que notou o absurdo da sua frase final. Entregaria pessoalmente no dia seguinte os sucessos devidos à sua imagem no espelho, não havia dúvidas.
A Tomás Gonzaga não é nada indiferente o desenrolar político do mundo. Com vinte anos, depois do malogro da sua experiência em Sevilha, aonde fora tentar a sorte como bandarilheiro, refugiou-se numa conversão política que fez dele o quadro de célula de um partido de esquerda, tendo então enjeitado o mundo da tauromaquia como um universo burguês e decadente, a evitar. Voltou para Mora e entregou-se à militância política com a benignidade do touro que cresce nos pastos: de forma inconsciente, movendo-se sem ser exposto a dúvidas, com a generosidade de quem rumina sem cálculos.
Foi provocatoriamente que amigos lhe emprestaram o vídeo do filme Good Bye Lenine e o livro Má Memória de Herberto Padilla, embora sem maldade. O filme deslocou-o para o epicentro de um pequeno sismo de que nunca se recomporia, desalinhando-o das respostas dogmáticas. As leituras, a contragosto, de outras obras sobre o estalinismo, despertaram-no para certos vícios de relação dos camaradas, que sempre relevara. Para lhe ser menos doloroso o distanciamento, decidiu ir viver para Lisboa, e aí arranjou emprego na agência mortuária L'Avenir, ironia de um comunista mítico já falecido e que deixara uma casa próspera ao seu filho, mais conservador, o qual olhava para a esfera política do pai como uma ideologia vencida, ainda que guardasse, dizia, um imenso respeito por ruínas. Neste ambiente, Gonzaga habituou-se a militar mais em causas pontuais que no pacote indiscriminado da crença partidária, e, tendo aprendido, por experiência, que as estruturas partidárias -- fossem quais fossem os quadrantes -- se imbuíam dos mesmos erros, mentiras, ambições camufladas e canalhices próprias ao humano, acabara por se reaproximar do seu primeiro amor, da tauromaquia.
Ademais, se o toureio a cavalo configurava definitivamente uma expressão classista, comparava o toureio a pé à rebeldia operária, que só depende da coragem pessoal e da nobreza de carácter. Para além de que o eventual ajuste da dinâmica social no palco das lutas de classe, parecia-lhe agora, não esgostava o desenho da dignidade humana; ao invés, um indivíduo enfrentar a sua própria cobardia numa arena sem recuo, diante de um touro de quinhentos quilos acrescentava brilho ao desassossego da sua fatuidade. E Tomás, alheio à superficial questão dos louros ou da glória, não deixava de citar a evidência física de que tantos matadores, que se escanhoam quinze minutos antes de subirem à arena, cheguem depois da faena aos camarins com uma barba de três dias.
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página 38 - 39
"Fotografar contra o vento"
António Cabrita
Edição Editora Exclamação
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(para ser subtil não linco a dedicatória ao senhor X, esse senhor herdeiro de Borges, com quem aprendo boas maneiras à boa maneira vitoriana, e que mesmo não parecendo lhe agradeço os recados.
mas não esqueçamos que o «governo de hombres e não de hampones» que Borges apoiou em certa altura da história argentina, era ao que parece um governo de ditadores. e então, estes não seriam hombres nem hampones, seriam apenas ómes.
terça-feira, 24 de novembro de 2020
«Roger Alvo Identificado Artista em Fúria Esperando Ordem para avançar Roger Cambio»
segunda-feira, 23 de novembro de 2020
sexta-feira, 20 de novembro de 2020
Dois momentos ideológicos ao almoço
1.
Pai: Há só dois países onde a covid não chegou. Coreia do Norte e Cuba. Bem... na Coreia houve um mas como foi morto não transmitiu. Aliás, como fez ao tio: deu-lhe um tiro.
Filho: Acho que a esse foi de canhão.
Pai: Mas em Cuba nada.
Filho: Ficavas contente se soubesses de casos em Cuba, ficavas feliz com o mal dos outros?
2.
Filho: Pois é, as pessoas às vezes deixam o cão passar fome mas com a covid toda a gente aproveita e vêem-se cada vez mais cães a passear o dono.
Pai: Há um senhor que vem todos os dias aqui há rua passear o cão. Ele é da rua da agrela, não é daqui.
Mãe: Mas olha, o cão fez cocó e o senhor apanhou com um saquinho.
Filho: Então, ele não pode passear o cão por onde quiser? Eu quando passeio não gosto que ninguém nem mesmo um polícia me diga que não posso passar.
Pai: Mas podia não vir para aqui. Podia ir mostrar outras paragens ao cão para ele se admirar.
Filho: Mas achas que o cão se importa para onde vai e que admira eheh agora fizeste-me rir.
O pai baixa a cabeça para o prato para esconder o seu próprio sorriso.
Filho: Se calhar, pensas que é outro terrorista?
Pai: Não, mas pode transmitir doenças, olha na Dinamarca mataram não sei quantos animais por causa da covid.
terça-feira, 17 de novembro de 2020
Ah como gosto das mulheres da Ásia
domingo, 15 de novembro de 2020
Extractos de «Peregrinação» de Olivier Rolin
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Nadar, simplesmente. Passar o limite, a grande fronteira das terras, deixar por alguns instantes a nossa parte do mundo, deixar de «ter os pés assentes no chão», deixar de andar. Entrar noutro reino, aventurar-se. Voltar para a infância, pois a lentidão, a falta de jeito da nossa progressão remetem para as dos primeiros tempos, e também a sensação de ser minúsculo, frágil, num espaço imenso. Nascer. Estar nu. Voar, devagar, desastradamente, mas voar, ser levado, deixar de pesar. Sonhar, a água é o lugar das imagens sem seguimento, desacordadas, dos sonhos sem nexo, dos fragmentos de vidas possíveis, dos deslumbramentos, do vago (esse vague, adjectivo que um feliz acaso faz, na língua francesa, o homónimo das grandes ondulações do mar), do inconstante. Entrar na água é fazer a experiência do épochè, essa filosófica suspensão de tudo. Morrer um pouco, também, pois sabemos que não resistiríamos muito tempo, que lá dentro, lá em baixo, apenas há lugar para os «afogados pensativos». Nadar, deixar-se acariciar por um perigo imenso, brincar por instantes com ele. Setembro chegou, o areal está deserto, a maré depositou nele franjas de vareque, todo o calor do verão está ainda encerrado na extensão calma, de olhos abertos debaixo de água vês os pequenos turbilhões de bolhas brilhantes que as tuas mãos fazem ao mergulhar em ritmo, ouves o seu rumorejar, o seu deslizar contra o teu corpo, quando respiras adivinhas o sol quebrado por mil arcos-íris, sentes-te mais livre e mais forte, e quase mais jovem, e não importa que seja apenas uma ilusão. Michaux: «A alma adora nadar.»
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página 113
«Peregrinação»
Olivier Rolin
tradução de Joana Cabral
Edição Sextante editora, 2019
sábado, 14 de novembro de 2020
quinta-feira, 12 de novembro de 2020
Kneeling angel with ball
«Kneeling angel with ball»
desenho a carvão, grafite e lápis de pastel seco sobre cartolina
70cm por 50cm
2020
ZMB
No ano 2000 em Angola era assim. E nós por cá: cumué?
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Por toda a Angola se consome e vive como se o mundo fosse acabar amanhã, se calhar vai mesmo, e não há que reservar seja o que for para um improvável mais tarde. Ou não tirar rendimento imediato possível do que se tem à mão. Também ali ia ser assim e todavia não era por razões de crise. Angola é grande e enganosa até inscrever no panorama geral da sua crise expressões de sofreguidão que afinal são antes de cultura e de sistema. Estávamos no tempo da carne e no meio de uma sociedade pastoril, em que ela só se consome, deliberadamente, quando o gado está gordo e é o tempo dos cultos, das festas e da ostentação distributiva dos mais prósperos, promotora de disputas, reciprocidades, alianças e produção de clientelas, e por isso a concentração de gente ali, naquela noite, era enorme, acorrida de todos os quadrantes ao encontro da pletórica fartura que o poder económico da linhagem do finado Luhuna garantia e a já proverbial generosidade do Nungunu, seu filho, anunciava. Desde que os bois tinham começado a ser abatidos, e a carne a ser cozida segundo as regras da sua divisão, da sequência do seu consumo e do acesso estatutário às partes, o chão tremia com as danças que muitos homens adultos e mulheres sobretudo mais-velhas não largavam. Os rapazes das famílias anfitriãs permaneciam, por dever de função, à volta da carne, a dividi-la e a cozê-la, enquanto as mulheres não paravam de trazer água e lenha, hieráticas silhuetas de braços erguidos e passo pesado a fluir e a refluir em filas e a dar corpo e voz às torrentes do crepúsculo.
Aquela era uma noite de Junho, era mesmo a noite do solstício de Junho, quando o Sol inverte a marcha dos seus lugares de nascer e pôr-se, eu via o fogo, os fogos, havia fogos por todo o lado, e não podia deixar de evocar fogos, fogueiras, solstícios por toda a parte do mundo, por todos os hemisférios, evocações que hei-de encontrar em casa, voltando a Luanda, certamente em Eliade e Caillois, sobre o sagrado, sobre a festa, orgias, saturnais, e num belo texto qualquer coisa que eu sei que há, de Yourcenar, e outro nos Diários com Leuco, de Pavese, de que Jean-Marie Straub extraiu um daqueles límpidos episódios, talhados em pedra branca, do La Nuée et la Résistance... O Biloa, ou um dos outros meus mais próximos do convívio no Vitivi, saía de vez em quando das arenas da dança para vir puxar uma fumaça dos cigarros sucessivos que eu, sentado na beira da minha desmantelada cadeira articulada, acendia, e o aturdimento daquilo tudo arrastava-me, sem que eu resistisse, para essas perigosas zonas da reflexão que, em certas alturas, tornam o antropólogo suspeito até perante si mesmo. Quadros míticos, neolíticos românticos. Que antropólogo honesto negará ter cedido por vezes ao fascínio de impossíveis mundos destes? E ali estava eu agora perante uma dessas sociedades onde se preservam matrizes assim. Presentes, meios e procedimentos afins a outras complexidades, a outras complexificações de actuação e de entendimento do mundo, mas o modelo das relações, as práticas de relação, são as que se atêm a um muito restrito apetrechamento tecnológico, o bastante, apenas, para extrair o rendimento máximo da água e do verde, da flor e do fruto, sem ir além da acção de uma elementar lâmina de catana ou de um gume de machado, e é todo o aço.
Da sorte, do destino até mesmo mais imediato, destas «comunidades»? Entrarão no século XXI sem que as dinâmicas de uma economia fundamentada na gestão dos equilíbrios se tenha alterado profundamente. Mas o fenómeno maior dos séculos XIX e XX, do ponto de vista social, terá, em meu entender, sido a chamada de todo o espaço planetário à aceitação, com resistência ou sem ela, à adopção vital perante toda a ordem de pressões, dos modelos ocidentais de prática e configuração ideológica da vida.
Terrenos perigosos. Ninguém hoje mais ou menos tributário do senso comum consegue deixar de associar despojamento tecnológico a miséria. Pôr isso em causa seria confrontar a redenção igualizante da ideologia do progresso, do crescimento económico e da acumulação de capitais financeiros, ao elogio, politicamente retrógrado, de uma prosperidade possível nos terrenos do equilíbrio e da redistribuição. De uma imputação deste tipo até os ecologistas cuidam em defender-se. Mas quem era eu para estar com estas coisas se, para meu uso pessoal e íntimo, quase, tinha apenas cinicamente passado da ideia sedimentada de evolução à de complexificação, substituindo Teillard de Chardin a Darwin? Ninguém fala hoje de darwinismo, é certo. Mas o iluminismo e o evolucionismo estão implícitos em toda a produção ideológica e intelectual que vigora e ainda e sempre omnipresente e dominantes, cientes já dos seus maiores pecados do passado, na aferição da qualidade dos homens segundo escalas físicas, primeiro, e depois segundo uma hierarquização das culturas, mas a fundamentar o mesmo espírito de império, ainda quando disfarçados de um igualmente abjecto paternalismo que confere a uns o direito de decidir, benemérita e providencialmente, pelos outros e em nome dos outros, os ignorantes e os atrasados, os coitados. E esses uns e outros somos todos nós, uns para os outros e por aí fora e sempre em função do ganho do outro.
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página 114 - 117
«Os papéis do Inglês»
Ruy Duarte de Carvalho
Edição Círculo de Leitores
terça-feira, 10 de novembro de 2020
domingo, 8 de novembro de 2020
sábado, 7 de novembro de 2020
Mark Fisher: 2 transcrições do seu livro «Realismo Capitalista»
Mark Fisher
''Realismo Capitalista, Não Haverá Alternativa?''
tradução Vasco Gato
edição VS. 2020
página 35 - 36:
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Porém, as questões ecológicas são já uma zona disputada, um território onde se luta pela politização. Assim, gostaria de realçar duas outras aporias no realismo capitalista, que estão longe ainda de se encontrarem politizadas no mesmo grau. A primeira é a saúde mental. Na verdade, a saúde mental é um caso paradigmático do funcionamento do realismo capitalista. O realismo capitalista teima em tratar a saúde mental como se esta fosse um acto natural, como a metereologia (embora, uma vez mais, a metereologia já não seja um facto natural, mas, sim, um efeito político-económico). Nas décadas de 1960 e 1970, a teoria e a política radicais (Laing, Foucault, Deleuze e Guattari, etc.) consolidaram-se em torno de condições mentais extremas, como a esquizofrenia, sustentando, por exemplo, que a loucura não era uma categoria natural, mas, sim, política. Todavia, o que é necessário agora é uma politização de um número muito maior de distúrbios vulgares. Aliás, a questão é mesmo a sua própria vulgaridade: na Grã-Bretanha, a depressão é hoje a doença que o Serviço Nacional de Saúde mais trata. No seu livro The Selfish Capitalist, Oliver James postulou de forma convincente uma correlação entre as taxas cada vez maiores de problemas mentais e o modo neoliberal do capitalismo que é praticado em países como a Grã-Bretanha, os EUA e a Austrália. Na linha do que James defende, gostaria de argumentar que é necessário reenquadrar o problema cada vez maior do stresse (e da angústia) nas sociedades capitalistas. Em vez de se tratar esta questão como cabendo aos indivíduos a solução das suas próprias angústias psicológicas, ou seja, em vez de se aceitar a imensa privatização do stress que teve lugar nos últimos 30 anos, há que fazer a pergunta: como é que se tornou aceitável que tanta gente, e sobretudo tantos jovens, esteja doente? O «flagelo da saúde mental» nas sociedades capitalistas levar-nos-ia a dizer que, em vez de ser o único sistema social que resulta, o capitalismo é intrinsecamente disfuncional e o custo do seu aparente funcionamento é elevadíssimo.
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página 107:
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Em Tarrying with the Negative, Zizek faz a afirmação célebre de que um certo espinosismo é a ideologia do capitalismo tardio. Zizek acredita que a rejeição da deontologia por Espinosa em prol de uma ética baseada em torno do conceito de saúde equivale supostamente à engenharia afectiva amoral do capitalismo. O exemplo famoso disso mesmo é a leitura que Espinosa faz do mito da Queda e da fundação da Lei. Na visão de Espinosa, Deus não condena Adão por ser uma acção errada ter comido a maçã; diz-lhe que ele não deve consumir a maçã porque esta irá envenená-lo. Para Zizek, trata-se da dramatização do fim da função do Pai. Um acto é errado não porque o Papá diz que é; o Papá apenas diz que é «errado» porque a realização desse acto é prejudicial para nós. Na perspectiva de Zizek, a jogada de Espinosa destitui a fundamentação da lei num acto sádico de cisão (o corte cruel da castração) ao mesmo tempo que recusa o postulado infundado da vontade própria num acto de pura volição, em que o sujeito assume a responsabilidade por tudo. Na realidade, Espinosa oferece imensos recursos para se analisar o regime afectivo do capitalismo tardio, o aparelho de controlo do tipo Videodrome descrito por Burroughs, Philip K. Dick e David Cronenberg, em que a vontade se dissolve numa névoa fantasmagórica de inebriantes psicológicos e físicos. Tal como Burroughs, Espinosa mostra que, longe de ser uma doença aberrante, o vício é o estado normal dos seres humanos, os quais são habitualmente escravizados por imagens paradas (deles próprios e do mundo) com vista a adoptarem comportamentos reactivos e repetitivos. A liberdade, mostra-nos Espinosa, é algo que só pode ser alcançado se conseguirmos apreender as causas reais das nossas acções, se pudermos pôr de lado as «tristes paixões» que nos inebriam e arrebatam.
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terça-feira, 3 de novembro de 2020
Pessoal ou transmissível
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Há já algum tempo que R pegara no livro cinzento e começara a ler ao acaso. Já nem lembra o que leu ou o que recordou de pessoal e intransmissível. Agora, lembra-se de palavras como miscigenação e lembra-se do seu eu antiquário que o instruiu acerca da não-autoria do livro que comprara juntamente com as mortalhas no centro comercial. Depois mais à frente, noutra folha lê: o mundo, o amor, a identidade, o dom da palavra e da comunicação, o dom de amar, o dom de não ter dúvidas de ser suficientemente amado, o dom de ser feliz e ser capaz de trabalhar... e pensando que também ele, mesmo tresloucado, tem direito a uma voz, decide fazer como os outros e adicionar palavras ao espaço em branco entre capítulos, decide mistificar a sua história.
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Claudio Mur