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Ao atravessamos no semáforo verde em direcção à Praça da Batalha, viro-me para o Doutor A.R. Spider que me acompanha e digo-lhe:
— Olha, há dias ia aqui onde nós estamos e apeteceu-me fazer um verso e enviar para o Rui Moreira, visto que ele quer acabar com as carrinhas... [carrinhas de distribuição gratuita de comida e outros items como roupa nas ruas do Porto]
— Infame!, diz A R. e eu concordo:
— É isso, eu ia a caminhar e ali, mais à frente, há um restaurante que faz takeaway, eu ia a caminhar e a ver muitos como eu caminhar para ir buscar a sopa da noite, e vi uma fila de gente, praí quinze pessoas à espera, olha, aqui mesmo, ora vê, à espera de uns bolos gourmet com muito creme e açúcar e do tamanho dum pastel de nata.
— É mesmo!
— Apeteceu-me fazer um verso, qualquer coisa como «lado a lado convivem bolos gourmet com sopas em taparuere» mas não fiz, não me achei capaz de descrever a realidade de modo a alguém de poder agir, intervir, melhorar, quem sabe por caridade ou por simples humanidade. Por isso, não fiz o verso mas pensei que seria mais uma crónica, uma crónica longa que explicasse a esses aristocratas que governam a cidade que não podem varrer as pessoas como lixo, varrê-las das ruas do Centro Histórico para não incomodar a visão idílica que as revistas de turismo transmitem sobre a cidade. Olha, há dias numa visita aos meus pais a meio da tarde, ao postigo da residência dos meus pais, ou seja, à porta de entrada, eu bem lhe disse «pai, nós não sabemos o que é a fome!», ele objectou e disse «eu sou do tempo da meia sardinha», mas eu respondi e ele compreendeu e ele veio da aldeia, não é como o Moreira que nasceu em berço dourado: «pai, tu venceste a fome e há pelo menos cinquenta anos que não a passas, eu mesmo nunca passei fome, eu não sei o que é ir buscar uma dose, e eles dão-nos esta saca de papel que parece a saca do pão mas dum papel mais grosso, almaço, dão-nos a saca com a dose lá dentro, comemos nos degraus da igreja e há quem diga, tenho de ir ali a Passos Manuel buscar uma segunda dose, abriu lá outro restaurante solidário, continuo com fome». O meu pai admirou-se, espantou-se: «é!, pai, a fome anda à solta, a comida é pouca, para muitos deles é a única do dia, a única que comem, nós aqui em casa sempre fizemos quatro boas refeições e vocês hoje, que são só os dois aqui, a mãe e tu ainda o fazem, eu lembro-me de, às vezes, assaltar o frigorífico para barrar tulicreme em moletes de pão acabadinho de chegar a casa quando me dava a fome... fome!?, vontade de comer, gulodice mas eles não, as pessoas que comem no restaurante solidário ou, agora com este vírus, lá vão buscar a dose takeaway, passam todo o dia apenas com a comida da noite, e claro, o dia passam-no pedindo uns trocos, cravando um cigarro, contando as suas histórias para ver se arranjam umas moedas para vinho a pacote cheio do chumbo que matou o Beethoven..., e o vinho consome-lhes energia, chupa-lhes já não a gordura que não têm mas a pouca carne nos ossos que ainda resta. Alguns, compram açúcar e adicionam-no ao vinho, mais fome dá», «podiam comer uma sopa em vez de beberem o vinho» diz o meu pai, «e quem os deixa sentar à mesa num restaurante?» e o meu pai cala-se.
Também eu me calo após estas palavras e Doutor A. R Spider continua calado, caminhamos para o restaurante. Estamos já a ultrapassar o Teatro e alguns adolescentes jogando o skate fazem pausa nas acrobacias, fazendo tenção de nos deixar passar. Eu registo e agrada-me o gesto deles, mas sigo com A. R. pela borda do átrio público junto à parede do Teatro deixando-lhes o chão livre para se divertirem. Chegamos finalmente ao Terço, a fila contorna o edifício.
À nossa frente estão dois colegas a falar castelhano, viram-se para trás e reconhecem A. R.
— Salud Dó-ctor.
— Salud amigos, há dias bebi um vinho tinto muito bom, Rioja 1968!
— Ah si, pero el vino blanco es mejor.
— Si claro.
À nossa frente, a fila anda mais rápida já, a comida é dada à porta numa entrada lateral na descida da rua. Hoje, foi dia de receber a reforma para alguns, e um velhote algumas pessoas à nossa frente vê uma jovem negra que sobe a rua para entrar na fila, pára o seu caminhar e diz-lhe qualquer coisa e ela ri-se e eu ouço-a dizer ao velhote enquanto lhe dá o braço para caminharem juntos:
— Não vamos comer, vamos gastar a reforma!
Atrás de mim, alguém comenta: — Olha, vão estourar tudo.
E quem o diz parece, pelo som da sua voz, ressentido. Eu que não me viro para trás para lhe ver o rosto, imagino-o como um pretendente sentindo-se atraiçoado.
À frente, duas pessoas à frente dos espanhóis, uma mulher nova, talvez vinte e cinco anos, bem vestida, daquelas que a gente, às vezes, vê nas ruas comprando com os olhos as montras das lojas de roupa, recebe a sua dose no saco de papel, o senhor do restaurante dá-lhe uma segunda dose porque ela está com uma menina de cinco ou seis anos, deve ser a filha. Ao vê-la, tomo consciência que não são só os pobres que estão com necessidade, também há gente que nunca sonhou precisar de ajuda que, agora nestes dias incertos, se vê e se sente no fundo, a precisar de ajuda e muitas vezes com vergonha de a pedir.
Após recebermos a nossa dose, subimos a rua, A. R. e eu, em direcção outra vez à praça. É nossa intenção sentarmo-nos a comer já nos degraus da igreja porque a comida está quentinha e A. R. não tem microondas em casa para aquecer a refeição.
Reparamos que há uma carrinha estacionada no passeio, pertence a uma associação religiosa, estão a dar café, ou melhor, uma bebida com café, parece cevada. Mas sabe bem. A. R. deixou a fila desta carrinha e dirigiu-se à banca lateral e pediu dois cafés, um para ele e outro para mim, eu entretanto guardo a vez e, à minha frente, um jovem, talvez de trinta anos, queixa-se que o Terço só lhe deu uma dose e que, após a dose desta carrinha, vai a Passos Manuel buscar uma terceira.
— É comida a mais, eu estou bem assim. Digo eu, mas ele explica a sua visão:
— Perdi o trabalho, estou a dever três mil euros de renda, para mim não houve moratória porque o contrato é de boca, o senhorio é boa pessoa, arranjei trabalho nas obras, e preciso de comer durante a pausa do trabalho para o almoço, amanhã.
— Sim, irmão, boa sorte. Digo eu.
Recebo também a minha dose e dou o nome, a associação gosta de ficar com um registo informal das pessoas que ajuda. Venho sentar-me finalmente nos degraus. A. R. fica na carrinha a ver se eles lhe arranjam uma camisola para este tempo frio. Depois vem sentar-se.
Comemos em silêncio. A espanhola sem-abrigo, que vive literalmente debaixo da ponte, vem pedir-nos um cigarro, não temos. Enquanto comemos, eu ponho-me a observar as gaivotas que comem os restos deixados por outros como nós no centro da praça, eles levantam-se e colocam a embalagem de estanho no chão e afastam-se. Logo, as gaivotas se aproximam para pousar e comer. Vejo como há uma gaivota alfa e que primeiro come ela, ela bica o resto da comida enquanto as outras fazem centro à embalagem, tentam aproximar e bicar, mas sempre respeitando a gaivota alfa, tentam e voltam para trás, só quando a alfa bicou o suficiente é que as outras comem. A lei da natureza é a lei do mais forte.
A dose de hoje do restaurante é uma cuvete de estanho com arroz branco e seis pequenas sardinhas fritas, petinga, bem cozinhadas, é preciso dizer. A dose inclui ainda dois ovos cozidos ainda com casca, uma bola de berlim e uma garrafa de água de um quarto de litro. Enquanto como as sardinhas e olho as gaivotas penso: «O meu pai era o sexto filho, segundo ele conta: o jantar de batatas cozidas com sardinha assada ou frita em azeite era parco, só havia quatro sardinhas, o resto a terra e a oliveira dava com labor, pelo menos, as sardinhas, eu ainda me lembro, eram bem mais gordas e não como estas que agora como, isto parecem jaquinzinhos, os avós comiam metade de uma, ou talvez comessem uma inteira não sei, mas cada filho, cada irmão comia uma metade, um comia a cabeça e o outro o rabo da sardinha. É isso que os donos disto tudo não entendem, as carrinhas dão uma dose extra de comida, e dão fruta, às vezes mais um taparuere de sopa de legumes e dão sumo em pacote e dão café e dão roupa... as ruas ficam sujas e os pobres comem na rua, sim é verdade, mas são seres humanos que precisam de apoio e não de ser enxotados, ocultados da opinião pública, é preciso que alguém escreva sobre isto!»
E foi isso que eu fiz logo que cheguei a casa e depois de preparar um café de saco no fogão de indução da minha cozinha. Há dias disse a um colega: «certo, a renda é barata mas é só por um quarto, o resto são arrumos e a frequência da casa de banho e da cozinha... mas vê só o estado desta chaminé, repara nas rachas que tem, parece só aparato mas qualquer dia estou com a cabeça debruçada sobre o tacho mexendo o refogado de frango com massa esparguete do almoço e... acabo enterrado debaixo da chaminé!»
É mesmo!, há dias cortei na casaca mas nem tudo é mau, até tenho um fogão ultramoderno, os outros dois ocupantes da casa mal põem os pés aqui em casa, e eu estou e sinto-me senhor de sete quintas.
São agora quase nove da noite. Dispo-me e deito-me por baixo do edredom da cama, tenho na mesinha-de-cabeceira o café quente e uma pedra que achei num muro para fumar. Coloco um cedê a tocar. Começo a escrever, vou bebendo e fumando. Sinto-me cansado de teclar no processador de texto. Termino o que queria dizer e publico nas redes sociais. A bomba que largo não pretende matar ninguém, apenas alertar para situações que não podem passar despercebidas. Somos todos pessoas que precisamos de paz, pão, habitação, saúde e educação. E muitos de nós não podemos pagar estes direitos que diria constitucionais.
Que dizer do sem-abrigo que vi ontem à porta do restaurante pedindo uma tenda e um colchão porque os serviços de limpeza urbana lhe levaram as coisas embora, eu diria mesmo: roubaram e deitaram ao lixo, ou para onde foi que levaram os cartões de papelão do abrigo de rua?, deixaram morada para levantamento dos pertences do sem-abrigo? Antigamente, era o canil o destino dos pertences... e ontem o sem-abrigo a dizer: — Fiquei só com a roupa do corpo... E eu olho para ele e para o seu olhar alienado, olhando para longe da pessoa a quem se dirige, olhando em frente e para trás, para mais longe, pedindo: — Arranje-me uma tenda, ao menos um colchão...
Desligo o computador e deito-me finalmente, estou cansado, demasiadas emoções num só dia. Vivi hoje como noutras noites a miséria alimentar, miséria mais dos outros que minha, pois eu ainda posso cozinhar. Não estou totalmente dependente da ajuda alimentar mas admito que a poupança me dá jeito para investir noutras coisas como livros ou tubos de óleo. Ponho-me a pensar em Heberto Padilla e no verso: «diz ao menos a tua verdade / e depois / deixa que aconteça qualquer coisa:» e, depois, adormeço a ouvir «Radio», uma peça para dois rádios de John Cage. A capa do cedê é o desenho de um cogumelo.
Dias depois, encontro novamente o Doutor A. R. Spider no jardim ao fim da tarde.
— Tens um charro?, pergunta.
— Tenho.
— Olha, vai ali a tua noiva!
Eu olho e vejo a espanhola sem-abrigo de sapatilhas verde-eléctrico e ignoro que ele me está a gozar e a depreciar, como se eu não merecesse melhor, humpf!, mas ignoro, faço que me rio e pergunto: — Eheh, a sério!
— Estava só a brincar...
Eu continuo o absurdo dizendo: — Não!, não me meto com ela, é casada com um gitano lá nas espanhas e não quero que ele se zangue e venha cá pôr-me a faca!, eheheh...
A. R. sorri, mas pouco. Eu penso que involuntariamente também estigmatizo em anedota o preconceito de classe, chutando o gozo do Doutor de mim para cima de um «cigano». Sinto-me mal com a minha própria atitude, é como se eu pisasse o mais fraco, como se o fraco fosse o único mau. Até um homem, desses que se designam por homens de bem, me tentariam fazer de algum modo a folha se eu me metesse com a mulher deles. É nisto que penso enquanto fumamos calados o charro.
Ouve-se rap vindo de umas colunas. Vemos ao longe um mano a rapar para os amigos. A. R. diz para irmos ter com eles.
Falam de rap entre eles, discutem tendências e estilos de rap e hip-hop, produtores de outrora e produtores novos que descobrem novos mundos. Kapataz rapa mais uma rima, tem um estilo super-rápido e sem perdigotos. Põe Wu Tang a tocar no tubo. Os amigos, um casal de namorados, andam na casa dos vinte anos, quando Kapataz termina nós batemos palmas mas eles dizem «não, palmas não, uus ululantes, uuuu... uuuu». Dou dez euros adiantados por um cedê do Kapataz, afinal é um excelente rapper e conhece todo o mundo, até o Valete dos subúrbios de Lisboa ei... — Põe a «roleta russa!»
A rapariga sorri e diz: — Não, essa é já muito batida. E põe um fadinho da Maria da Piedade. Eu calo-me e rio-me, todos riem e ela, primeiro canta o refrão e, depois ri-se também, dizendo: — Não falem mal da minha Piedade! E põe a tocar uma rapper colombiana. Uma voz em espanhol, o beat por detrás, o rap é mundial.
A. R. diz: Vamos daqui a pouco à comida? Convida-me para um café em tua casa primeiro, ainda não bebi um hoje, sou cafeólico, sabes fazer cartões de apresentação?
— Sim, sei. Porque? Queres que te faça um, é?
— Quero que ponhas: «Doutor A. R. Spider — especialista em vudu e medicina ilegal».
— Ahahah!
Deixamos os nossos amigos musicais e vimos até minha casa. Pelo caminho vou explicando ao Doutor:
— Olha, Doutor, este rapaz fez parte do projecto es.col.a como aluno na Fontinha, ele até disse: «o meu pai não me deixava sair mas se fosse para ir à es.co.la ele já deixava!» e eu: «sim, e davam explicações de inglês e matemática, aulas de pintura, tudo de graça...», ele recorda: «até torneios de pingue-pongue...»
Emociono-me e continuo: — A es.col.a... ei!, foi a melhor coisa que no Porto aconteceu a nível social, a escola era um edifício abandonado para onde os ressacas se iam picar, eles tomaram conta do espaço, alguns ressacas naturalmente afastaram-se e foram picar para outros lados, outros ficaram e deixaram de picar, a escola deu esperança e trouxe educação ao bairro, tornou-o respirável e durante quase dois anos e cosmopoilta, muitas das aulas eram dadas por estrangeiros e estudantes em erasmus... houve uma primeira intervenção que os desalojou mas.. numa manifestação, três mil pessoas expulsaram os polícias, mas depois eles voltaram dias depois com reforços e destruíram tudo, tijolaram, partiram o mobiliário, transformaram livros em cimento e deitaram ao contentor do lixo, foram doze anos de Rui Rio, e agora, se o deixarem candidatar novamente, serão doze anos de Rui Moreira, enfim... o povo do Porto gosta de senhores galantes. E a rapariga tão bonita, tão jovem, tão fresca, eles são já o futuro...
— Sim, ela é muito bonita.
Depois do café de saco em minha casa e depois de irmos ao restaurante solidário, hoje não houve o extra da carrinha, comemos nas escadas da igreja e despedimo-nos e cada um volta para o seu alojamento. Ponho-me a falar sozinho pelo caminho:
— Bem, pelo menos, agora posso tomar e oferecer um café feito por mim aos meus amigos e colegas que me visitam. Aqui há uns anos, era bem diferente. A primeira senhoria não me deixava cozinhar, quanto muito deixava-me aquecer um bule de água para café instantâneo. Não é a mesma coisa. Foi nessa altura que conheci a irmã Lúcia num bar de contrabandistas. Ela era apenas uma das amigas especiais do gerente e, ao que parece, ela engraçou comigo. Ela tinha cabelo comprido louro e encaracolado, apanhado num rabo de cavalo e, da primeira vez que falámos, ofereceu-me erva à discrição e eu não me fiz discreto e servi-me bem, gostei logo dela; da segunda vez, pagou-me cerveja nos bares e contou-me algumas das suas histórias mas, depois, quis que eu a acompanhasse de táxi a casa mas algo na sua atitude de senhora mandona, porque pagadora do consumo da noite, fez-me retroceder e não seguir com ela, afinal eram já seis da manhã e, às dez, eu teria de estar já acordado e sóbrio para ir poder reservar o lugar para almoçar na cantina dos pobres, se não chegasse a tempo poderia já não almoçar, já na altura havia muita gente troicada; da terceira vez, já ela rapara a pente zero o cabelo, eu disse-lhe: «sabes o que me falta? Uma companhia...» e ela respondeu soberana: «Compra um cão!» Na manhã seguinte, acordei sonhando com um cão, de lombo assentado e patas no ar, dormindo a meu lado. Não nos vimos durante umas semanas, até que uma manhã de Natal ela me manda uma mensagem para o telemóvel quando eu me preparava para ir almoçar a casa dos meus pais. Respondo agradecendo as boas festas e retribuindo os cumprimentos. Ela volta a responder e convida-me para sua casa. Apanho o autocarro mal posso deixar a família e vou ter com ela já bem almoçado, levo ganza. Chego lá e ela propõe que eu vá à bomba de gasolina abastecer-me de uísque e vinho, dá-me vinte euros. Eu regresso com uma garrafa de Cutty Sark e um vinho tinto de Murça. A sua casa tem um quarto interior sem janela onde dorme a filha de quatro anos num beliche cheio de peluches, uma cozinha, uma sala com uma reentrância onde ela dorme num colchão no chão, nenhuns móveis, chão de taco encerado, uma pequena manta onde nos sentámos, uma televisão, um leitor de dvd, vários filmes, duas garrafas, dois copos e vários charros. Pomo-nos a ver devedês, a fumar, a beber e acabamos finalmente a comermo-nos.
— É, meu! Não sei porquê, a irmã Lúcia preferia oferecer-me o traseiro, o sexo não era nada seguro, ela não gostava de camisas, e eu cheguei a cansar-me de tão repetitivo que era, sempre a mesma posição, só a via de costas, eram umas belas costas, bem torneadas. Ao princípio ainda me contou como sobrevivera meses a vender rosas vermelhas de papel aos turistas, ou como saía de casa e, até ao fim da rua, cravava um maço inteiro de cigarros, um a um, ia pedindo e ia enchendo o maço usado, Mas, a partir de certa altura, deixámos de falar um com o outro. Enchíamos o copo um do outro, fazíamos mais uma broca, mudávamos de dvd sem mesmo esperar meia hora, ela mandava-me calar quando eu tentava comentar qualquer cena do filme... é!, e depois, chegando ao ponto, dizia «come-me» e eu comia-a.
— O pior é que ela se cagava. Como durante o serão, eram várias as vias-de-facto, eu, às vezes, colocava os joelhos em cima de merda seca, pois nada mais havia senão a luz da televisão. Ei, só de pensar... o pior era que não comíamos mais nada, e o meu estômago começou a ressentir-se do excesso de bebida branca e tinta e de mais nada para compensar, nada de sólido, só líquidos ácidos a corroerem as paredes do estômago, soube que tinha de parar com esta aventura quando senti o final do esófago a arder-me sempre que bebia mesmo que apenas um copo de água, comecei a tentar comer antes de ir para casa dela, comecei a vomitar a comida, soube que tinha de parar...
— Sim, depois ela arranjou um parceiro extra, ainda fizemos um serão os três, com nós dois a competir por ela, ela nessa noite cozinhou-nos um puré com fígados de porco grelhado e mandou-nos ao supermercado comprar bebida, eu disse que não tinha dinheiro, e ela acabou por o escolher a ele na impossibilidade de eu me juntar à sanduíche, raisme fodam.
— Sim mas ficaste-lhe na memória, ela mais tarde voltou a ligar.
— Sim mas eu não quis saber. Sei que ela me deixou de considerar um gatuno e, ao mesmo tempo, queria-me como companhia para ela e para a filha, mas, no fundo, ela só queria ganza. Não sei...
— Da última vez que a vi, ela disse que quando recebesse o abono de família do alemão, do pai da criança, iria comprar um quilo de erva, e eu achei demais, deixei-lhe comida para a filha porque quis deixar e um charro para ela fumar porque ela chorou por ele.
— Nunca mais a vi. Não, minto, há seis meses ou quê, ia no autocarro e vi-a no passeio. Parecia aparvalhada. Que alguém me perdoe: ela parecia um rapazinho.
— Mas porque me lembrei agora da irmã Lúcia? Terá sido por o Doutor ter falado da noiva, da minha noiva, da noiva que não existe?
— É, parece que até aos olhos de com quem convivo, o que me falta é uma mulher para me coser as meias e cozer as batatas...
— Não, não é para isso que eu quero uma mulher. Quero numa mulher sentir companhia, empatia e alegria. Quanto ao resto, eu gosto de cozinhar e a comida solidária oferece variedade de pratos gastronómicos, coisas caras de comprar para cozinhar ou menus que eu não sei fazer. Quanto às meias, a minha família dá-me meias no Natal, tantas que dão para o ano inteiro, é usar, ficar roto e deitar fora.
— Mas quanto à minha noiva, como o Doutor A. R. Spider a designou... as últimas e definitivas notícias obtidas da boca de um colega sem-abrigo... veio a polícia e veio o serviço de limpeza... no dia seguinte a tenda deles desaparecera de debaixo da ponte e o espaço estava agora ocupado por um carro estacionado ilegalmente, ao perneta viram-no perto da muralha, a diabética viram-na a sair de uma hospedaria e a minha noiva... um rato tinha-a mordido durante a noite e a cara inchou, depois veio uma infecção na orelha... recolheram-na no antigo Hospital Joaquim Urbano para tratamento alcoólico... diz quem por lá passou e dormiu que é pior que a prisão, ao menos na prisão tens uma hora de passeio por razões de higiene mental, ali, no antigo hospital, uma pessoa que só precise de pernoitar e comer é obrigado a não sair todo o dia, é obrigado a aturar os olhares e as necessidades dos desgraçados em tratamento, uma pessoa dá em maluco.
— A Primavera chegará, bandido.
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Claudio Mur,
inspirando-se em John Fante
nesta sua colaboração para a fanzine «Patrulha do Espaço nº 4»,
brevemente em papel, também com textos de Zarelleci e Artur Rockzane
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