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Já não consentiam ao Doninha que entrasse na Sociedade Harmonia Cerromaior. Nem no café. A perna supurava, deixando em redor um cheiro acre. Mas, mais que o cheiro, era a figura andrajosa, suja, e as conversas despropositadas que incomodavam os presentes.
O contínuo fora avisado e não o deixava passar da porta -- que a direcção ia ver, ia decidir. Também no café o dono o empurrava para a rua, falando apressadamente:
-- Não! Vá-se embora, homem! Aqui não é nenhuma taberna!
Ia para trás do balcão, vagamente receoso dos olhos do Doninha, que ficava parado no meio da rua, a olhá-lo fixo. Aquele olhar tinha qualquer coisa de sinistro e de triste como o de um cão faminto e escorraçado.
Depois, Doninha afastava-se, meio curvado, apoiando-se a uma bengala. Vinha até ao largo. Aí, sentava-se num caixote, sem se importar que fizesse sombra ou que o sol do Verão queimasse como brasa. Para ali estava, horas seguidas, calado, olhando o chão. Muitas vezes acontecia virem buscá-lo, apreensivos com a imobilidade do carteiro, de cabeça encostada à parede, a velha farda aberta, o peito avermelhado e magro.
-- Saia daí, Doninha. Olhe que ainda apanha uma congestão.
Doninha deixava-se levar.
Só uns tantos frequentadores das vendas se agradavam da sua presença. Pagavam-lhe vinho, que Doninha bebia com sofreguidão. Em seguida, puxavam-lhe pela língua. Já sabiam qual o assunto do carteiro. E ficavam, de gosto, a ouvi-lo falar mal da gente da vila.
Contava tudo. Adultérios, roubos, intrigas. Negócios de corda ao pescoço eram trazidos para ali, à luz do Sol e pelas palavras próprias, sem subterfúgios. Nenhuma família escapava na boca do Doninha.
Um prazer rir impunemente de escândalos que todos conheciam, mas ninguém se atrevia a criticar em voz alta.
-- É por eu saber tudo isto que eles me não querem no clube nem no café! -- exclamava Doninha, de olhos muito abertos. -- Sei tudo. A mim não me fazem o ninho atrás da orelha!
Por fim, Doninha só dizia:
-- Uns pulhas!
Desabotoava o único botão da farda sebenta, abria a camisa, estendendo o queixo como se tivesse dificuldade em respirar. Agora, todo o ódio se lhe refugiava nos olhos:
-- Pulhas!
Ninguém sabia já de quem falava. Vinham-lhe crises terríveis. Tremia todo como um trapo sacudido por um redemoínho de vento. Seguravam-no antes que caísse desamparado, e o acesso terminava numa ansiedade e numa sede que só o vinho aplacavam. Então, ficava amarfanhado sobre o banco, erguendo a mão trémula, com o brilho do ódio embaciado pelas lágrimas:
-- Pulhas, pulhas!...
Os homens das vendas começaram a sentir naquele olhar e naquelas palavras qualquer coisa que lhes dizia respeito. A pouco e pouco, afastaram-se do Doninha.
Todos, na vila, evitavam referir-se ao carteiro. Somente, de quando em quando, abriam excepção para uma frase onde punham toda a necessidade de explicar aquela desgraça:
-- É da sífilis que lhe subiu à cabeça.
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páginas 173 -- 175
Manuel da Fonseca em «Cerromaior»
edição Caminho, 6ª edição, 1981
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