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E foi isso que eu fiz logo que cheguei a casa e depois de preparar um café de saco no fogão de indução da minha cozinha. Há dias disse a um colega: «certo, a renda é barata mas é só por um quarto, o resto são arrumos e a frequência da casa de banho e da cozinha... mas vê só o estado desta chaminé, repara nas rachas que tem, parece só aparato mas qualquer dia estou com a cabeça debruçada sobre o tacho mexendo o refogado de frango com massa esparguete do almoço e... acabo enterrado debaixo da chaminé!»
É mesmo!, há dias cortei na casaca mas nem tudo é mau, até tenho um fogão ultramoderno, os outros dois ocupantes da casa mal pôem os pés aqui em casa, e eu estou e sinto-me senhor de sete quintas.
São agora quase nove da noite. Dispo-me e deito-me por baixo do édredon da cama, tenho na mesinha-de-cabeceira o café quente e uma pedra que achei num muro para fumar. Coloco um cedê a tocar. Começo a escrever, vou bebendo e fumando. Sinto-me cansado de teclar no processador de texto. Termino o que queria dizer e publico nas redes sociais. A bomba que largo não pretende matar ninguém, apenas alertar para situações que não podem passar despercebidas. Somos todos pessoas que precisamos de paz, pão, habitação, saúde e educação. E muitos de nós não podemos pagar estes direitos que diria constitucionais.
Que dizer do sem-abrigo que vi ontem à porta do restaurante pedindo uma tenda e um colchão porque os serviços de limpeza urbana lhe levaram as coisas embora, eu diria mesmo: roubaram e deitaram ao lixo, ou para onde foi que levaram os cartões de papelão do abrigo de rua?, deixaram morada para levantamento dos pertences do sem-abrigo? Antigamente, era o canil o destino dos pertences e o sem-abrigo a dizer: -- Fiquei só com a roupa do corpo... E eu olho para ele e para o seu olhar alienado, olhando para longe da pessoa a quem se dirige pedindo: -- Arranje-me uma tenda, ao menos um colchão...
Desligo o computador e deito-me finalmente, estou cansado, demasiadas emoções num só dia. Vivi hoje como noutras noites a miséria alimentar, miséria mais dos outros que minha, pois eu ainda posso cozinhar. Não estou totalmente dependente da ajuda alimentar mas admito que a poupança me dá jeito para investir noutras coisas como livros ou tubos de óleo. Ponho-me a pensar em Heberto Padilla e no verso: «diz ao menos a tua verdade / e depois / deixa que aconteça qualquer coisa:» e, depois, adormeço a ouvir «Radio», uma peça para dois rádios de John Cage.
Dias depois, encontro novmente o Doutor A. R. Spider no jardim ao fim da tarde.
-- Tens um charro?, pergunta.
-- Tenho.
-- Olha, vai ali a tua noiva!
Eu olho e vejo a espanhola sem-abrigo de sapatilhas verde-eléctrico e ignoro que ele me está a gozar e a depreciar, como se eu não merecesse melhor, humpf!, mas ignoro, faço que me rio e pergunto: -- Eheh, a sério!
-- Estava só a brincar...
Eu continuo o absurdo dizendo: -- Não!, não me meto com ela, é casada com um gitano lá nas espanhas e não quero que ele se zangue e venha cá pôr-me a faca!, eheheh...
A. R. sorri. Eu penso que involuntariamente também estigmatizo em anedota o preconceito de classe, chutando o gozo do Doutor de mim para cima de um «cigano». Sinto-me mal com a minha própria atitude, é como se eu pisasse o mais fraco. Fumamos calados o charro.
Ouve-se rap vindo de umas colunas. Vemos ao longe um mano a rapar para os amigos. A. R. diz para irmos ter com eles.
Falam de rap entre eles, discutem tendências e estilos de rap e hip-hop, produtores de outrora e produtores novos que descobrem novos mundos. Kapataz rapa mais uma rima, tem um estilo super-rápido e sem perdigotos. Põe Wu Tang a tocar no tubo. Os amigos, um casal de namorados, andam na casa dos vinte anos, quando Kapataz termina nós batemos palmas mas eles dizem «não, palmas não, uus ululantes, uuuu... uuuu». Dou dez euros adiantados por um cedê do Kapataz, afinal é um excelente rapper e conhece todo o mundo, até o Valete dos subúrbios de Lisboa ei... -- Põe a «roleta russa!»
A rapariga sorri e diz: -- Não, essa é já muito batida. E põe um fadinho da Maria da Piedade. Eu calo-me e rio-me, todos riem e ela ri-se também dizendo: -- Não falem mal da minha Piedade! E põe a tocar uma rapper colombiana. Uma voz em espanhol, o beat por detrás, o rap é mundial.
A. R. diz: Vamos daqui a pouco à comida? Convida-me para um café em tua casa primeiro, ainda não bebi um hoje, sou cafeólico, sabes fazer cartões de apresentação?
-- Sim, sei. Porque? Queres que te faça um, é?
-- Quero que ponhas: «Doutor A. R. Spider -- especialista em vudu e medicina ilegal».
-- Ahahah!
Deixamos os nossos amigos musicais e vimos até minha casa. Pelo caminho vou explicando ao Doutor:
-- Olha, Doutor, este rapaz fez parte do projecto es.co.la como aluno na Fontinha, ele até disse: «o meu pai não me deixva sair mas se fosse para ir à es.co.la ele já deixava!» e eu: «sim, e davam explicações de inglês e matemática, aulas de pintura, tudo de graça...», ele recorda: «até torneios de pingue-pongue...»
Emociono-me e continuo: -- A es.co.la... ei!, foi a melhor coisa que no Porto aconteceu a nível social, três mil pessoas expulsaram os polícias, mas depois eles voltaram dias depois com reforços e destruíram tudo, tijolaram, partiram o mobiliário, transformaram livros em cimento e deitaram ao contentor do lixo, foram doze anos de Rui Rio, e agora, se o deixarem candidatar novamente, serão doze anos de Rui Moreira, enfim... o povo do Porto gosta de senhores galantes. E a rapariga tão bonita, tão jovem, tão fresca, eles são já o futuro...
-- Sim, ela é muito bonita.
Depois do café de saco em minha casa e depois de irmos ao restaurante solidário, hoje não houve o extra da carrinha, comemos nas escadas da igreja e despedimo-nos e cada um volta para o seu alojamento. Ponho-me a falar sozinho pelo caminho:
-- Bem, pelo menos, agora posso tomar e oferecer um café feito por mim aos meus amigos e colegas que me visitam. Aqui há uns anos, era bem diferente. A primeira senhoria não me deixava cozinhar, quanto muito deixava-me aquecer um bule de água para café instantâneo. Não é a mesma coisa. Foi nessa altura que conheci a irmã Lúcia num bar de contrabandistas. Ela era apenas uma das amigas especiais do gerente e, ao que parece, ela engraçou comigo. Ela tinha cabelo comprido louro e encaracolado, apanhado num rabo de cavalo e, da primeira vez que falámos, ofereceu-me erva à discrição e eu não me fiz discreto e servi-me bem; da segunda vez, pagou-me cerveja nos bares e quis que eu a acompanhasse de táxi a casa mas algo na sua atitude de senhora mandona, porque pagadora do consumo da noite, fez-me retroceder e não seguir com ela, afinal eram já seis da manhã e às dez teria de estar já acordado e sóbrio para ir poder reservar o lugar para almoçar na cantina dos pobres, se não chegasse a tempo poderia já não almoçar, já na altura havia muita gente troicada; da terceira vez, já ela rapara a pente zero o cabelo, eu disse-lhe: «sabes o que me falta? Uma companhia...» e ela respondeu soberana: «Compra um cão!» Não nos vimos durante umas semanas, até que uma manhã de Natal ela me manda uma mensagem para o telemóvel quando eu me preparava para almoçar com os meus pais. Respondo agradecendo as boas festas e retribuindo os cumprimentos. Ela volta a responder e convida-me para sua casa. Apanho o autocarro mal posso deixar a família e vou ter com ela já bem almoçado, levo ganza. Chego lá e ela propõe que eu vá à bomba de gasolina abastecer-me de uísque e vinho, dá-me vinte euros. Eu regresso com uma garrafa de Cutty Sark e um vinho tinto de Murça. A sua casa tem um quarto interior sem janela onde dorme a filha de quatro anos, uma cozinha, uma sala com uma reentrância onde ela dorme num colchão no chão, nenhuns móveis, chão de taco encerado, uma pequena manta onde nos sentámos, uma televisão, um leitor de dvd, vários filmes, duas garrafas, dois copos e vários charros. Pômo-nos a ver devedês, a fumar, a beber e acabamos finalmente a comermo-nos.
-- É, meu! Não sei porquê, a irmã Lúcia preferia oferecer-me o traseiro, o sexo não era nada seguro, ela não gostava de camisas, e eu cheguei a cansar-me de tão repetitivo que era, sempre a mesma posição, só a via de costas, a partir de certa altura, deixámos de falar um com o outro, enchíamos o copo um do outro, fazíamos mais uma broca, mudávamos de dvd sem mesmo esperar meia hora, ela mandava-me calar quando eu tentava comentar qualquer cena do filme... é!, e depois, chegando ao ponto, dizia «come-me» e eu comia-a. O pior é que ela se cagava. Como durante o serão, eram várias as vias-de-facto, eu às vezes colocava os joelhos em cima de merda seca, pois nada mais havia senão a luz da televisão. Ei, só de pensar... o pior era que não comíamos mais nada, e o meu estômago começou a ressentir-se do excesso de bebida branca e tinta e de mais nada para compensar, nada de sólido, só líquidos ácidos a corroerem as paredes do estômago, soube que tinha de parar com esta aventura quando senti o final do esófago a arder-me sempre que bebia mesmo que apenas um copo de água, comecei a tentar comer antes de ir para casa dela, comecei a vomitar a comida, soube que tinha de parar...
-- Sim, depois ela arranjou um parceiro extra, ainda fizémos um serão os três, com nós dois a competir por ela, ela nessa noite cozinhou-nos um purê com fígados de porco grelhado e mandou-nos ao supermercado comprar bebida, eu disse que não tinha dinheiro, e ela acabou por o escolher a ele na impossibilidade de eu me juntar à sanduíche, raisme fodam.
-- Sim mas ficaste--lhe na memória, ela mais tarde voltou a ligar.
-- Sim mas eu não quis saber. Sei que ela me deixou de considerar um gatuno e, ao mesmo tempo, queria-me como companhia para ela e para a filha, mas, no fundo, ela só queria ganza. Não sei...
-- Da última vez que a vi, ela disse que quando recebesse o abono de família do alemão, do pai da criança, iria comprar um quilo de erva, e eu achei demais, deixei-lhe comida para a filha porque quis deixar e um charro para ela fumar porque ela chorou por ele.
-- Nunca mais a vi. Não, minto, há seis meses ou quê, ia no autocarro e vi-a no passeio. Parecia aparvalhada. Que alguém me perdoe: ela parecia um rapazinho.
Claudio Mur
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