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Há muito tempo -- mas muito tempo não basta para vos dar uma ideia... Contudo como dizer melhor?
Há muito, muito, muito tempo; mas muito, muito tempo.
Então um dia... não, não havia dia, nem noite, então uma vez, mas não havia... Havia sim, de outra maneira como falar? Então meteu na cabeça (não, não tinha cabeça), teve a ideia... Sim, é isso, teve a ideia de fazer alguma coisa.
Queria beber. Mas beber o quê? Não havia vermute, nem vinho da madeira, nem branco, nem tinto, nem cerveja Dréher, nem cidra, nem água! Há que pensar que foi preciso inventar tudo isso, ainda não tinha acontecido, a marcha do progresso. Ai! o progresso!
Não podendo beber, quis comer. Mas comer o quê? Não havia sopa de azedas, nem rodovalho com alcaparras, nem assado, nem batatas, nem carne de vaca estufada, nem peras, nem queijo de Roquefort, nem indigestão, nem lugares para se estar sozinho... Nós vivemos no progresso! E julgamos que tudo isso existiu desde sempre!
Então, não podendo beber nem comer, quis cantar (alegremente), cantar. Cantar (triste), sim, mas cantar o quê? Nem canções, nem romanças, meu coração! flor em botão! Nem coração, nem flor, nem agudíssimos la-ri-la-rai os males cantando espantai! Nem ar para transportar a voz, nem violino, nem acordeão, nem órgão, (gesto) nem piano! assim para ser acompanhado pela filha da porteira... só que nem porteira! Ai! o progresso!
Impossível cantar? Então vou dançar. Mas dançar o quê? Com quê? Nem soalho encerado, para uma pessoa se estatelar, está a ver... Nem sarau com lustres e candelabros nas paredes a escorrerem cera para as costas de uma pessoa, nem copos, nem xaropes entornados nos vestidos! Nem vestidos! Nem bailarinas para usarem vestidos! Nem pais a ressonar, nem mães vermelhuscas para empatar a dança!
Então nem beber, nem comer, nem cantar, nem dançar. Que fazer? -- Dormir! Portanto, vou dormir. Dormir, mas não havia noite, nem havia daqueles momentos que não querem passar (quando, de noite, uma pessoa boceja (boceja), boceja, boceja, sabe?). Não havia noite, nem cama, nem edredões, nem cobertas acolchoadas, nem botija quente, nem mesinha de cabeceira, nem... Basta! Ai! o progresso!
Então quis amar! Disse para consigo: vou-me apaixonar; vou suspirar, é uma distracção; até vou ter ciúmes; vou bater na minha... Na minha quê? Bater em quem? Ter ciúmes de quê? De quem? Apaixonar-me por quem? Suspirar por quê? Por uma morena? Não havia morenas. Por uma loira? Não havia loiras, nem ruivas: nem sequer havia cabelos, tranças falsas, pois não havia mulheres! Ainda não tinham sido inventadas as mulheres! Ai! o progresso!
Morrer então! Sim, disse para consigo (resignado): Quero morrer. Morrer como? Não havia canal Saint-Martin, nem cordas, nem revólveres, nem doenças, nem poções, nem farmacêuticos, nem médicos!
Enntão não quis nada! (Queixoso.) Que situação mais infeliz!... (Rectificando.) Mas não chore não! Não havia situação, nem infelicidade. Felicidade, infelicidade, tudo isso é moderno!
O fim da história? Mas não havia fim. Ainda não tinha sido inventado o fim. Acabar é uma invenção, um progresso! Ai! o progresso! o progresso!
Estupidamente, sai.
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páginas 67 - 69
Charles Cros,
em «Monólogos»
Tradução de Regina Guimarães
edição Editora Exclamação
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