domingo, 24 de abril de 2016

O desejo de um bom café de saco

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Mas, apesar de toda a vontade, Cha despediu-se ao fim de quarenta minutos de trabalho, tinha sido empregado de bar durante uma temporada nos seus tempos de estudante, há duas décadas que não servia vinho a ninguém, nem colocar o avental de trabalho soube, foi chamado à atenção, aguentou, explicou-se, voltou ao trabalho, mas veio-lhe à garganta um sabor tão seco que disse «que se foda, esta vida não é para mim», entregou o avental e o saca-rolhas de serviço e foi à sua vida. Foi afogar as mágoas num copo de cerveja, embebedou-se ou embebedaram-no e vomitou em cima de quem estava sentado a seu lado, levou um murro no focinho, o amigo, a quem ligou após sair do restaurante para tentar esquecer o fracasso profissional, deu razão ao agressor, Cha acabou por o ignorar e fugiu dele para dentro de um clube de música reggae, deitou-se às seis da manhã, às nove levantou-se, tomou um banho, reparou no inchaço na face esquerda e foi guardar a sua cadeira na cantina da caridade, disse «preciso de deixar a casa de hóspedes, tenho que ter acesso a um fogão, tenho que poder pôr uma cafeteira ao lume e tomar um bom café de saco, não preciso mais de aturar intrigas, comentários, falsas vozes e falsos amigos, olhares inimigos ou aproveitadores.»
Comeu com fome, soube-lhe bem. Voltou de seguida ao quarto e deitou-se ao comprido na cama. Deixou que as ondas no estômago lhe chegassem ao cérebro, as pálpebras começaram a relaxar, a pesar, o corpo a pedir descanso, sentiu-se adormecer ouvindo a mente falar dele na terceira pessoa, ele, o capitão mancha com sintomas de despersonalização, ouvindo a mente desenvolver um solilóquio hipnagógico pontuado pela respiração cada vez mais lenta, perguntando-se «onde foi que perdeste a vontade, pareces congelado, em ti tudo hoje é aparente, onde está a utopia de nascer suburbano e transcender o destino, vives num quarto com as condições mínimas, tens tempo, tens de o ocupar, tens de recuperar a chama, não pode ser só depois-mais-tarde, depois de tudo, onde foi que perdeste a vontade?, e eu Cha respondo-te capitão… há muito tempo imaginei-me e escrevi-me com mais trinta anos e pus-me a dialogar com o eu que escrevia nesse momento, no fundo uma metáfora do envelhecimento e este nota-se hoje no meu rosto no busto de mármore a minha barba já tem tufos grisalhos e o prazo dos trinta anos não se esgotou ainda, sou como que uma criança velha, às vezes preciso de usar óculos, esqueço-me do que fiz, quis ser cantor e cheguei a ministro e a personagem que escreve tem dedos grandes e pára a frase para pensar, fumar, olhar pela janela os telhados das casas que foram ficando devolutas e sendo ocupadas pelos mil que vivem na rua, o eu que escreve já não tem prazer em descrever o dia-a-dia que ouve do pouco contacto humano que recebe agora, o pensamento surge e a masturbação da caneta é lenta, agora ganha fôlego, um dia trocaste aquilo que parecia o mais perto possível da felicidade por menos que nada como se fosse uma rebelião necessária e amanhã trocarás esse nada pelo pouco que ainda resta, uma malga, uma manta e chinelos descosidos nos pés… para quê ir ao café participar de um escândalo se posso ficar o serão a ler um livro?, tento não estar presente, não assistir à realidade, fujo para dentro de mim, eu não aceito decisões que se baseiam em violência… tento varrer a violência mas há muita debaixo do tapete, não quero mais esconder não a suporto prefiro não a ver dói-me pensar que eu também fui violento em certos momentos, hoje com vergonha fujo da confusão porque eu, em escala, já vivi esta vida, essa vida de violência… todos os dias tiros, facadas, vigarices, desresponsabilizações, escândalos, jogos políticos, interesses, quando parará tudo isto?, nunca tive uma relação social que fosse ou pudesse ser considerada como normal-entre-iguais, passo a vida a mudar de local, chamo-lhe o meu covil, eu… o capitão mancha acha-se um lobo mas as pessoas riem-se dele ou tratam-no como um tolo, um sempre-a-rir, alguém maleável, alguém manobrável, alguém que não faz mal a uma mosca mas que pode servir para desenrascar a gulodice, algum útil que facilmente se manobra para se tornar o burro de carga, o bode a quem se atiram as culpas, a palavra chibo é exagerada mas até o capitão a usa de vez em quando, o capitão está convencido que pelo seu simples acto de pensar as acções imaginadas logo se materializam, é aqui na materialização do pensar que consiste a chibaria, logo os actos privados, as ideias são tornadas públicas às vezes com ligeiras alterações no pormenor ou na sequência que ele atribui ao carácter evolutivo e ecológico, o capitão mancha vê constantemente notícias, textos nos jornais e pormenores que se lembra de ter pensado, de vez em quando aparece alguém no éter que o capitão conheceu, pode agora ler o que as pessoas fizeram da sua vida, o capitão mancha sente que não tem vida, ainda há bocado o capitão pensava que foi descendo cada vez mais o seu limiar de sobrevivência que agora, completamente só, sente que já não tem vida mas que vai-se-andando, poderia ele dizer aos poucos que o incomodam com um aperto de mão e umas palavras… tenho que concordar com o capitão e dizer que talvez devido ao seu rebaixamento social a que quase voluntariamente se sujeitou, os seus amigos são poucos e de baixa qualidade… há os cabrões e os otários, os cabrões não duram para sempre, ou morrem ou se tornam otários com tetas para mamar… o capitão mancha sente-se um otário… o Sancho chamou-me ótario ontem… o capitão diz que herdou a parte má dos seus progenitores, diz que do pai herdou o valor da poupança e herdou também aquela vontade de não falar com ninguém, essa dureza de se achar burro por só ter a quarta classe e não saber falar de nada. O capitão mancha, ao contrário do pai, tem estudos mas pouco fez com eles, o capitão fez tudo o que o pai não fez, o pai tem a quarta classe mas manteve o mesmo trabalho durante trinta anos, pelo contrário o capitão mandou o curso à merda, ou seja, não fez nada com ele e hoje está completamente desclassificado para trabalho, nem voltar ao ramo da restauração onde há vinte e poucos anos ganhou alguns cobres em part-time enquanto estudava um curso mal escolhido, o capitão mancha diz que escolheu o curso porque ele dava dinheiro mas, lá no fundo, era na área de trabalho do pai. O filho Cha quis seguir o caminho do pai mas o pai não achou bem. Talvez quisesse que eu fosse porteiro ou político facilitador mas mete-me nojo o aguenta-aguenta, mete-me nojo o falso somos-o-que-escolhemos-ser, porque não basta ter voz quando não há padrinhos a ensinar como abrir portas e o meu padrinho morreu morto por um homem-morcego e eu sinto-me um joker quando toda a gente que me conheceu antes tenta perguntar o que correu mal, quando não o sabem ou quando têm perversa curiosidade. Têm na memória alguém que já não sou eu. Há dias em que penso ter tido pouca consideração pela minha própria sobrevivência. Caí em situações impossíveis. Foi isso que correu mal, tive o desejo insensato de conhecer a miséria, de sentir a fome. Quis ver se sentia a realidade picar-me a pele, quis ver se sentia dor, se jorrava sangue, se era humano e estava vivo ainda ou se era um robot, uma marioneta mario neta a neta do mário não dei um único neto ao mário o nome acaba comigo talvez o mário pensasse que o filho queria com os estudos adquiridos passar à sua frente, mandar no pai onde já se viu talvez o pai pensasse como os psiquiatras em A-morte-do-Pai, quando sou eu, meu pai, que estou a morrer eu não vou ter a tua sorte quando algo me for detectado já só sairei do hospital directamente para o cemitério ou nem isso será a senhoria que virá bater à porta para cobrar a renda porque o senhor capitão não tem aparecido para me pedir que lhe lave os lençóis se faz favor… era tão bem parecido… um pouco choninhas… poderia ter sido o banco da minha…» 
Cha adormeceu. Finalmente. Esquecido num orgasmo do nome que o sonho ia evocar. Paz à sua alma.
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Claudio Mur 
em
"O estranho caso do capitão Mancha e do cê Sancho"

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