segunda-feira, 13 de março de 2017

Um discurso no jantar de Domingo

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Nem sei por onde começar, Acho que tudo começou no dia internacional da mulher, na Quarta-feira. Resolvi esmerar-me e preparar-lhe um bom jantar, com aquele menu que ela tinha sugerido, houve cerveja e café, houve até saída para um bar. Despedimo-nos nessa noite, ela tinha compromissos bem de manhã cedo, eu tinha de me deitar também porque, na realidade, estou a entrar na idade cota ou a cota de pdi já é elevada na existência que levo e, portanto, para mim a noite é para dormir (ou para pinar). Não havendo disposição para voltar junta comigo para minha casa, não estando eu prevenido com um preservativo no bolso para irmos para algum quarto de hotel, querendo ela ficar a terminar a cerveja, eu decidi-me a regressar sozinho a casa no autocarro da madrugada, um pouco frustrado é certo. Trocámos uns beijos apetitosos e combinámos para o dia seguinte. 
No dia seguinte, acordei tarde e cansado, nada fiz de produtivo, esperei pela hora de a ver, nada, não houve comunicação, o telemóvel tocando e nada, desisti e desliguei, pensei que, no fundo, eu também não estava em condições de estar com ela, e por isso ela também não ligar ou não atender o telemóvel acabava por até ser uma opção pragmática, afinal ninguém tem uma morte súbita por falta da dose diária de beijinhos, mas ainda assim pensei que algo se tivesse passado de fora do normal, visto todos os dias falarmos pelo menos uma vez.
Só voltamos a falar na Sexta, ela explicou-me que passara o dia de Quinta a dormir, faltara a todos os compromissos e ficara a dormir, depois de eu a deixar sozinha a terminar a sua cerveja no bar tinha conhecido alguém que a convidara para um copo fora-de-horas, e ela aceitara, por isso pedia desculpa. Reparou igualmente que eu fiquei macambúzio e perguntou se eu estava zangado com ela, eu disse «não, não estou, só acho que não aproveitas quando estás comigo, queres sempre mais um copo e acabas por não cumprir com os teus compromissos além de mim, há aqui um padrão.» Ela diz que eu tenho razão e que «agora hoje o meu telemóvel recebe sms como se eu fosse uma prostituta!, tenho de facto que mudar de posição» «sim, agora resolve os problemas que te surgem durante a noite!»
Desliguei, mais frustrado do que zangado, afinal o padrão mantem-se, ela prefere beber a pinar, não adianta muito ser romântico e planear um programa «com jantar à luz de vela, no final com romance ou sem ele, ficas a ver os navios passarem no cais.» Ou seja, estava frustrado como se não soubesse o que a casa gasta. Mas comecei a ficar misógino no meu pensamento, quando somei dois mais dois e deu cinco, porque ela disse-me que tinha ido com a amiga beber noutro bar e depois apanharam um táxi para o quinto dos infernos (por tão longe ser) mas também me disse na mesma conversa que tinha encontrado nessa noite um antigo rival meu, conhecido na praça por oferecer bebida, algo em que me bate aos pontos, quero dizer, ele tem simplesmente condições que eu não possuo. Portanto, tornei-me misógino em pensamento, porque «afinal ela foi beber com ele, diz-me que bebeu com uma amiga, faltou aos compromissos, não pinou comigo, não vale de nada fazer a minha parte no negócio, o amor não passa de um negócio!»
Passei Sexta e Sábado a ouvir música, Sei Miguel e Bernardo Devlin, um lp e um cd, música feita e editada em Portugal por músicos portugueses, música mais do que portuguesa, música com um som universal, música que transcende a nacionalidade mas na qual eu sinto orgulho de ser feita por gente-da-minha-terra, música que tem um som que eu quase transformo  em banda sonora para os meus pensamentos, música que me faz pensar «eu tenho a minha riqueza, todos estes discos têm memórias para mim, digo que o meu passado está enterrado, mas toda esta música me evoca fantasmas, ou me evoca situações em que não preciso de mais ninguém, estou bem só, eu e a minha música, ela é-me fiel, ela não me troca, ela não me exige nada, ela vem quando eu a escolho da minha colecção, ela vem, o som sai das colunas e uma memória surge, uma memória que me preenche, eu hoje à noite vou assistir a um novo concerto de Pop dell'arte, espero que ninguém do meu passado apareça para me foder o juízo!»
Foi assim, ao som de música editada pela Ama Romanta e pela Ananana, que eu preenchi dois dias de misoginia transformando-se rapidamente em misantropia, a música tem esse efeito, isola-me, fecha-me no casulo e deixa-me a pensar que não preciso de falar com ninguém, de resolver mal-entendidos. Fui ao concerto mas saí a meio, não estava afinal bem, a música era demasiado social, demasiado pop, popular, festiva, era afinal a celebração do regresso da banda ao Porto. Mas eu não estava com o sentimento certo, estava misantropo e associal sem ser ofensivo, pelo menos pensei isto até um tipo do meu passado me encontrar e me cumprimentar, foi aí que eu de facto cortei a conversa, dizendo que «ia dar uma volta». Senti-me incomodado na minha solidão e pensei «se queres estar sozinho fica em casa não gastas dinheiro e ninguém te incomoda ao tentar falar contigo!» Vim-me embora a meio do concerto.
Ontem, Domingo, estava combinado que iria almoçar com a minha família mas como dormi mal, acordei de manhã mais cansado do que me deitara. Acabei por, ao meio-dia, ligar ao meu pai para me desobrigar do almoço «e se poderia ir jantar aí». O meu pai disse-me que assim seria «só nós os dois e a tua mãe, vem almoçar, mesmo que chegues tarde, as tuas irmãs e os meninos também vêm.» Eu desculpei-me dizendo que tinha acordado há pouco, ainda tinha de tomar banho e fazer a barba e que me doía a cabeça. O meu pai aceitou e eu adiei o almoço para o jantar. Saí de casa e fui comprar pão. Voltei e fiz quatro sandes de ovos mexidos, passei a tarde a ouvir o «your funeral my trial» do Nick Cave e a ignorar as mensagens que ela me enviava, saí de casa ao fim da tarde, apanhei o autocarro para casa dos meus pais. 
Ao jantar, falei da novidade-boato do dia, os gémeos do Ronaldo e disse «Se daqui por uns anos o Cristianinho se virar contra o pai eu não me admirarei, ele diz que muitos meninos não conhecem ou não têm pai ou mãe, e diz que o seu filho tem a avó, as tias, etc, certo!, o filho do Ronaldo não chora por falta de brinquedos, nem por falta de comida, nem vive num mundo em guerra, não lhe falta nada, mas, se calhar, talvez lhe falte tudo, uma mãe, mesmos os filhos que já não têm mãe têm pelo menos uma memória, uma fotografia, um nome, o Ronaldo não tem uma mãe para dar ao filho dele... estas coisas entre gente rica abafam-se às vezes, basta um cheque ou uma viagem de estudantes paga como compensação... mas não me admiraria se o Cristianinho se zangasse com o pai um dia...» «Pois é,» diz a minha mãe «tens razão, o menino precisa de uma mãe...» Eu, embalado pelo discurso e sentindo um peso libertar-se de mim ao falar, ao proferir palavras e sair do meu casulo, lembrei-me de outro assunto de noticiário e continuei a discursar, desta vez sobre o milagre de Fátima, disse-lhes que há cem anos previram através de notícia no jornal o milagre, dois meses antes de Maio, e disse-lhes que bastou irem mil devotos em romaria por estradas que na altura não existiam, chegarem à Cova da Iria, olharem para o céu, e nada verem... disse-lhes que a igreja arranjou três pastorinhos e os meteu depois no convento, isolados do mundo, disse-lhes que a irmã Lúcia disse em 1945 que Salazar era um enviado de Deus, disse-lhes que Fátima era um embuste e que a igreja era fascista, disse-lhes que eles, os meus pais, não tinham culpa, já tinham nascido com aquilo «talvez até o avô tenha lá ido de burro...» A minha mãe riu-se e disse «o avô não tinha burro!» «Pronto, de bicicleta, ele andava de bicicleta, foi tudo uma invenção dos jornais!» O meu pai disse «tens direito à tua opinião, mas não podes estar aqui a fazer campanha contra coisas em quem nós acreditamos, porque criticas no teu discurso a igreja e não os radicais do islão?, alguma vez a igreja te fez mal?», eu respondi que a igreja não me fez mal, só acho que é hipócrita, e há muita gente a aproveitar-se dos chamados milagres e  falei dos mil euros por um saco-cama, falei de quem vende tubos «com ar de Fátima», falei do ouro nazi do santuário e depois falei na constituição portuguesa, disse que somos um estado laico, que devemos respeitar todas as religiões e não favorecer nenhuma e disse-lhes que não posso falar do que não conheço, que fui educado num meio cristão e que só depois de resolvermos os nossos problemas é que podemos ter alguma autoridade para «meter o bedelho no assunto dos outros» O meu pai não ficou muito convencido com o que eu disse mas o jantar foi pacífico e eu desabafei.
Desabafei e, hoje, ganhei coragem, voltei a falar com ela e fizémos as pazes, afinal o cinco era imaginado, a soma tem, na realidade, o quatro como resultado, ela explicou-me que deixara o meu rival plantado no bar no outro dia, no dia em que este relato começou, e que não me tinha trocado por ele. E eu fiquei aliviado, o amor é assim, voltei a sentir-me seguro, o céu voltou a ser azul, o amor, para mim, é sempre assim, um turbilhão inconstante: nuns dias sinto-me um anjo conquistador e noutros dias um chifrudo do inferno. O que me vale é que o processo de oscilar entre estes dois sentimentos é agora mais suave, os danos são já reduzidos, nesta vida tudo passa, e a minha amiga gosta de mim, tem o seu feitio peculiar, é deslumbrante sem ser top-model e, acima de tudo, não é má para mim: isso faz toda a diferença.
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Claudio Mur

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