quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

A Vontade de Ordem

'
Pode definir-se a ciência como a redução da multiplicação à unidade. Ela procura explicar os fenómenos diversos da natureza, ignorando a especificidade de acontecimentos particulares, concentrando-se naquilo que têm em comum e, finalmente, deduzindo uma espécie de «lei» que nos permite compreendê-los e lidar com eles. Por exemplo, as maçãs caem da árvore e a Lua move-se no céu. As pessoas observam estes factos desde tempos imemoriais. Como Gertrude Stein, estavam convencidas de que uma maçã é uma maçã é uma maçã, enquanto a Lua é a Lua é a Lua. Coube a Isaac Newton perceber o que estes fenómenos muito diferentes tinham em comum e formular uma teoria da gravitação nos termos da qual certos aspectos do comportamento das maçãs, dos corpos celestes e de tudo o resto no universo físico podiam ser explicados e abordados em termos de um único sistema de ideias. Com este mesmo espírito, o artista parte das inúmeras diversidades e especificidades do mundo exterior, bem como da sua imaginação, para lhes dar um significado dentro de um sistema ordenado de padrões plásticos, literários ou musicais. O desejo de impor ordem na confusão, de gerar harmonia a partir da dissonância e unidade a partir da multiplicidade é uma espécie de instinto intelectual, um impulso primário e fundamental do espírito. Nos domínios da ciência, da arte e da filosofia, os mecanismos daquilo que posso designar como «Vontade de Ordem» são sobretudo benéficos. É verdade que a vontade de ordem produziu muitas sínteses prematuras com base em indícios insuficientes, muitos sistemas absurdos de metafísica e biologia, muita confusão pretensiosa entre ideias e realidade, entre símbolos e abstrações para os dados da experiência imediata. Mas estes erros, ainda que lamentáveis, não são muito prejudiciais, pelo menos directamente - embora por vezes aconteça que um mau sistema filosófico possa ser nefasto de maneira indirecta quando é utilizado como justificação para actos insensatos e desumanos. É no âmbito social, no domínio da política e da economia, que a Vontade de Ordem se torna realmente perigosa.
Aqui, a redução teórica de uma multiplicidade difícil de gerir a uma unidade compreensível transforma-se na redução prática da diversidade humana à uniformidade sub-humana, da liberdade à servidão. Em política, o equivalente de uma teoria científica ou sistema filosófico plenamente desenvolvidos é uma ditadura totalitária. Em economia, o equivalente de uma obra de arte é uma fábrica a funcionar sem incidentes, em que os trabalhadores se encontram bem adaptados às máquinas, A Vontade de Ordem pode converter em tiranos os que apenas pretendem pôr cobro à confusão. Utiliza-se a beleza da ordem para justificar o despotismo.
'

páginas 45-46

'Regresso ao admirável mundo novo'
Aldous Huxley
tradução de Luis Leitão
edição Antígona

Sem comentários:

Enviar um comentário