segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

O filho disfuncional e o desabafo sincrético

"sincretismo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 
2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/sincretismo [consultado em 08-01-2018].
3. Amálgama de concepções heterogéneas.


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Olha, Via Láctea minha irmã, olha que eu não tenho inveja do que o pai te dá a ti ou à nossa irmã, a sério que não, eu apenas queria o que é meu por direito, o que é justo, tu bem vês como o pai me trata, ainda agora por causa da maçaneta da porta do anexo, eu a falar-lhe que a fechadura precisa de um parafuso para fixar a maçaneta, e que sem esse parafuso quando se fecha a porta fica-se com a maçaneta na mão, o que pode impedir que a porta feche bem... e tu viste como ele me falou, mandou-me comprar uma fechadura, tu até intervieste protestando dos seus modos de falar comigo, ora eu não moro cá, o anexo não é minha propriedade, a casa é dele e ele manda-me comprar uma fechadura, parece que não se importa que o roubem, olha que aquilo já está assim... já dei pelo problema há seis meses, no Verão, e eu é que sou o nabo porque lhe tentei falar de um problema na sua propriedade e é isto, não me fala direito, até parece que não sou filho dele, trata-me mal, desde pequeno que é assim, parece que nunca gostou de mim, um dia por causa de uma birra minha mandou-me para a escola com um olho negro, tu eras bebé, não podes recordar, ele tem mais respeito aos meus cunhados do que a mim, eu é que sou o filho, mas ele agora tem dois filhos novos que foram igualmente abandonados pelos pais e que agora são seus filhos-genros, ele com eles fala bem, quando chega o Domingo e vocês chegam para almoçar ele deixa o que está a fazer para vos vir cumprimentar, e eu chego antes de todos vocês apesar de vir de transporte público e ele não faz o mesmo esforço, tenho que ser eu a ir procurá-lo para lhe dar um beijo, pois eu estou farto deste tratamento, tu bem viste no outro dia em que chegámos os três a casa e tu tocaste à campainha e eu abri a porta porque tenho a chave que ele me deu e se tu não ouviste ele dizer-me «então, entras em casa sem avisar!», se tu não ouviste eu protestar com ele, por ele me estar a chamar de gatuno, foi porque eu decidi ignorar em vez de lhe dizer «arranja a campaínha!», ignorei porque estou habituado a ignorar este tratamento, e sabes porquê?, porque senão sou eu que berro alto, sou eu que faço escândalo, é a mim que a tampa salta e estrago o almoço de família e porquê, por causa destes pequenos pormenores que me caem mal, é que vocês chegam para comer à uma da tarde mas eu chego antes, e nessa meia-hora ouço e vejo muitas coisas que me desagradam que me fazem ficar de trombas todo o almoço, porque se protestar sou eu sempre o mau, aliás tenho currículo de maluco, mas eu digo-vos, que eu se errei no passado, se vos fiz mal já admiti, já confessei, já fui condenado, já paguei a minha dívida, já não faço nada de errado, nada que me envergonhe ou tenha de esconder, eu não tenho de ignorar e ficar de trombas todo o almoço nem tenho de ser hipócrita com as banalidades e novos-riquismos que se palram nestes almoços, eu sempre que venho comer aqui fico doente, pois eu não quero ficar doente outra vez, eu não preciso de vir aqui para ficar doente, eu não preciso de comer bifes de dez euros, ou cabrito ou lombo ou seja lá o que for, eu não preciso de nada disto, eu não morro à fome, eu sei cozinhar, se há coisas que as minhas namoradas me ensinaram foi a cozinhar, eu não morro à fome, não preciso de vir aqui para comer, para ficar doente, posso comer sempre arroz mas não preciso de vir aqui, eu sei porque as coisas estão assim, estão assim desde Fevereiro do ano passado, desde que eu descobri que o dinheiro que ele me dava vinha afinal da mãe, quando houve aquele desentendimento e ele descobriu que eu descobri e ele se sentiu desautorizado, quando no fundo o dinheiro não era dele e ele tinha tiques de dono do dinheiro, desde essa altura que ele me trata mal, há um ano que esta merda corre e eu a encher a cabeça, a engolir, a calar, a ignorar, pois não pode ser, e digo mais, virei cá das próximas vezes para retirar o que ainda é meu no anexo: os quadros, os cds, os livros, e depois se alguém assaltar a propriedade... já nada é meu, acreditem que estou a ficar indiferente, acreditem que esta selva em que nos dizem que temos de viver... esta selva diz-me que eu tenho de ficar indiferente, no passado emocionei-me, indignei-me, protestei e o resultado foi ficar doente, quatro vezes internado quatro vezes a recomeçar do zero, pois desta vez não , não vou adoecer, não vou deixar que por vossa causa, por causa do mundo, da selva, por causa de eu não saber reagir educadamente... é o que te digo estou a ficar indiferente aos vossos problemas, aos problemas dos meus semelhantes, vocês contribuem para o banco alimentar mas eu já saciei a fome a um vizinho, vocês subsidiam uma organização eu dou a um pobre, há aqui uma diferença que vocês não conseguem compreender, o pai não consegue compreender, e eu estou a ficar indiferente, estou a deixar de ser psicótico para ficar neurótico, estou a ficar sem paciência, estou a ficar velho como ele, pois há uma coisa que eu uma vez lhe disse «se eu sou mal-educado é porque tu não me soubeste educar», estou a ficar como ele mas já não tenho paciência para o aturar e vocês pagam por tabela, eu e ele na mesma sala dá faísca, tu não tens culpa, os meninos também não, a mãe idem, mas vamos ver-nos menos vezes, desculpa tudo isto, obrigado pela boleia, beijinho.
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Claudio Mur

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