terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Fazia o meu ensaio na literatura frascária

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Três dias de recolhimento, com os meus passos tolhidos pela asma. Ficava no quarto do tio Juca a pensar disparates, a ler os livros dele, de cima da cómoda. Havia um que lia todas as noites, uma meia hora antes de adormecer, com um castiçal perto da rede: era um romance imoral, com umas figuras como aquelas dos cartões que ele tinha. E quando ele saía eu ficava a ler o livro com a excitação de quem estivesse com uma rapariga no quarto. O Santa Rosa lá por fora devia estar nos seus dias maravilhosos, pois levantara-se o sol para fazer mais verdes os campos e abrir as flores de todo o jardim que era o engenho. Mas nos meus dias de doença o livro do tio Juca fechava-me os ouvidos e os olhos a tudo que não fossem aqueles amores dos seus heróis. Fazia o meu ensaio na literatura frascária, e nunca um livro se ligou tão intimamente com as minhas tendências. Lendo-o, era como se estivesse animando os meus sentidos doidos por se soltarem. O homem da história só vivia de beijos e de coitos; as mulheres expunham-se nas figuras em trajos naturais.
Podia o Santa Rosa dar festas com todos os encantos da sua natureza, enfeitar-se nas estacas do cercado com o florido das suas trepadeiras. Podia o mussambé cheirar como um frasco de essência derramado pelo caminho. Eu não sabia de nada, com a minha asma a piar, e naquele mundo diferente daquele em que eu vivia, o mundo alegre do romance do tio Juca.
A literatura começava a seduzir-me com ares assim de deboche. Era o primeiro livro que lia do começo ao fim por gosto, sem a obrigação da lição. E a leitura empolgou-me de tal forma, que me confundia com o desejos libertinos da história. O tio Juca passava o dia inteiro fora. Vinha para o almoço, e voltava para o serviço até à noitinha.
-- Você anda a ler os meus livros hoje, bem?
E não ralhou comigo. Tirava a roupa e deitava-se na rede para o seu sono profundo. Com as minhas vigílias de asmático, ouvia o seu ressonar ritmado, forte, bem diferente daquele estertor de Aurélio. Achava boa a vida do tio Juca. queria ser como ele. Tinha dinheiro no bolso para gastar. Fazia tudo o que desejava. Ia ao Recife de vez em quando. Ninguém mandava nele.
(...)
-- Não leia estes livros, que fazem mal -- disse-me sem ralhar, advertindo somente.
Doutra vez:
-- Você está amarelo de mais! Que diabo é isso? abra os olhos: isso faz-lhe mal.
Eu sabia o que o meu tio pretendia ferir, até onde ia a sua malícia:
-- Você precisa de dar um passeio por fora.
Sabia também a extensão do seu conselho. Um passeio por fora, chegar terra para o pé da cana, era como eles se referiam à necessidade do coito para a saúde. Eles tinham este preconceito contra a castidade. Atribuíam à abstinência uma porção de males. Havia amarelos por isto, doidos por falta de mulher. Vinha ao engenho um parente nosso, chamado Fernando, que sofria de ataques.
-- Aquele bicho precisa é de vadiar um pouco -- dizia o tio Juca.
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, páginas 135-137

'Doidinho'
José Lins do Rego
edição Livros Unibolso

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